domingo, 30 de novembro de 2008

Reflexão...

"...Raros são aqueles que decidem após madura reflexão; os outros andam ao sabor das ondas e longe de se conduzirem deixam-se levar pelos primeiros..."
Lucius Annaeus Seneca

A Mais Cruel das Torturas...

Seria difícil conceber castigo mais demoníaco, pudesse uma tal coisa ser posta em prática, do que abandonar uma pessoa à deriva na sociedade por forma a passar despercebida a todos os seus membros. Se ninguém se voltasse para nós ao ver-nos entrar em casa, se ninguém nos respondesse quando nós falássemos, ou se preocupasse com o que nós fizéssemos, mas se toda a gente que conhecêssemos nos «desligasse do mundo» e agisse como se fôssemos entidades inexistentes, não tardaríamos a ser tomados de uma espécie de desespero de raiva e impotência, de que a mais cruel das torturas corporais seria um alívio.
William James, in 'The Principles of Psychology'

sábado, 29 de novembro de 2008

Reflexão...

"...Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte..."
Lucius Annaeus Seneca

Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo...

Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho.
Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore? e até a flor, eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada?, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia'

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Reflexão...

"...Uma mulher bonita não é aquela de quem se elogiam as pernas ou os braços, mas aquela cuja inteira aparência é de tal beleza que não deixa possibilidades para admirar as partes isoladas..."
Lucius Annaeus Seneca

O Que é a Religião ???

De início, portanto, em vez de perguntar o que é religião, eu preferiria indagar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dá a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser aquela que, tanto quanto lhe foi possível, libertou-se dos grilhões, dos seus desejos egoístas e está preocupada com pensamentos, sentimentos e aspirações a que se apega em razão do seu valor suprapessoal. Parece-me que o que importa é a força desse conteúdo suprapessoal, e a profundidade da convicção na superioridade do seu significado, quer se faça ou não alguma tentativa de unir esse conteúdo com um Ser divino, pois, de outro modo, não poderíamos considerar Buda e Espinoza como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de não ter nenhuma dúvida quanto ao valor e eminência dos objectivos e metas suprapessoais que não exigem nem admitem fundamentação racional. Eles existem, tão necessária e corriqueiramente quanto ela própria.
Nesse sentido, a religião é o antiquíssimo esforço da humanidade para atingir uma clara e completa consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessantemente o seu efeito. Quando concebemos a religião e a ciência segundo estas definições, um conflito entre elas parece impossível. Pois a ciência pode apenas determinar o que é, não o que deve ser, isso está fora do seu domínio, logo todos os tipos de juízos de valor continuam a ser necessários. A religião, por outro lado, lida somente com avaliações do pensamento e da acção humanos: não lhe é lícito falar de factos e das relações entre os factos. Segundo esta interpretação, os famosos conflitos ocorridos entre religião e ciência no passado devem ser todos atribuídos a uma apreensão equivocada da situação descrita.
Albert Einstein, in 'Ciência e Religião' (Out Of My Later Years)

A Bíblia por Goethe...

Discute-se muito e há-de continuar a discutir-se em torno das vantagens e inconvenientes da divulgação da Bíblia. Para mim o assunto é claro: será perniciosa, como sempre o foi, se for usada de modo dogmático e fantasista; e será útil, como sempre o foi, se for encarada de modo didático e sensível.
É minha convicção que a Bíblia se torna tanto mais bela quanto mais a entendemos, ou seja, quanto mais se percebe e simultaneamente se intui cada uma das palavras que vamos apreendendo como coisa geral e que aplicamos ao nosso caso como coisa particular teve um dia, em certa situação, em determinadas circunstâncias de tempo e de lugar, uma aplicação individual própria, específica, imediata.
Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Verdadeira Religião é Individual e não Social...

É possível que a religião da solidão seja de certa maneira superior à religião social e formalizada. O que é certo é que ela apareceu mais tarde no decurso da evolução. Além disso, os fundadores das religiões e seitas históricamente mais importantes têm sido todos, com excepção de Confúcio, solitários. Talvez seja verdade dizer-se que, quanto mais poderosa e original for uma mente, mais ela se inclinará para a religião da solidão, e menos ela será atraída no sentido da religião social ou impressionada pelas suas práticas. Pela sua própria superioridade a religião da solidão está condenada a ser a religião das minorias. Para a grande maioria dos homens e das mulheres a religião ainda significa, o que sempre significou, religião social formalizada, um assunto de rituais, observâncias mecânicas, emoção das massas. Perguntem a qualquer dessas pessoas o que é a verdadeira essência da religião, e eles responderão que ela consiste na devida observância de certas formalidades, na repetição de certas frases, na reunião em certos tempos e em certos lugares, da realização por meios apropriados de emoções comunais.
Aldous Huxley, in 'Sobre a Democracia e Outros Estudos'

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Esta é Genial...

... Gosto desta ideia: que o Amor é uma forma de conversação em que as palavras agem em vez de serem faladas ...

Religião Emocional...


Os dirigentes das religiões bem sucedidas nunca, pode−se realmente dizer, dispensaram de todo as armas fisiológicas nas suas tentativas de conferir graça espiritual aos seus semelhantes. Jejum, castigo da carne por flagelação ou desconforto físico, regulação da respiração, revelação de mistérios terríveis, toque de tambor, danças, cantos, provocação de medo, pânico, iluminação fantástica ou gloriosa, incenso, drogas inebriantes – esses são apenas alguns dos inúmeros métodos empregados para modificar a função cerebral normal em propósitos religiosos. Algumas seitas prestam mais atenção que outras à estimulação de emoções como meio de afectar o sistema nervoso superior; mas poucas a desprezam inteiramente.
William Sargant, in 'A Luta Pela Mente'

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Conversão Mental...

Os métodos de conversão religiosa foram até agora considerados mais sob ângulos psicológicos e metafísicos que psicológicos e mecanísticos; contudo, as técnicas empregadas aproximam−se tanto frequentemente das modernas técnicas políticas de lavagem cerebral e controle da mente que cada uma delas lança luz sobre os mecanismos da outra. É conveniente começar com a história melhor documentada de conversão religiosa, que tem em comum com a conversão política o facto de um indivíduo ou grupo de indivíduos poder adoptar novas crenças ou padrões de comportamento, em resultado de revelações surgidas na mente repentinamente e com grande intensidade, muitas vezes depois de períodos de grande tensão emocional.
William Sargant, in 'A Luta Pela Mente'

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A Verdadeira Religião...

Nunca me esquecerei do dia em que, dizendo-lhe «Mas, senhor padre Manuel, a verdade, a verdade, acima de tudo», ele, a tremer, sussurou-me ao ouvido - e isso apesar de estarmos sozinhos no meio do campo: - «A verdade? A verdade, Lázaro, é porventura uma coisa terrível, uma coisa intolerável, uma coisa mortal; as pessoas simples não conseguiriam viver com ela.»
«E porque é que ma deixa vislumbrar agora aqui, como confissão?», perguntei-lhe. E ele respondeu: «Porque se não atormentar-me-ia tanto, tanto, que eu acabaria por gritá-lo no meio da praça, e isso nunca, nunca, nunca. Eu estou cá para fazer viver as almas dos meus paroquianos, para os fazer felizes, para fazer com que se sonhem imortais e não para os matar. O que aqui faz falta é que eles vivam sãmente, que vivam em unanimidade de sentido, e com a verdade, com a minha verdade, não viveriam. Que vivam. E é isto que a Igreja faz, fazer com que vivam. Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto fazem viver espiritualmente os povos que as professam, enquanto os consolam de terem tido de nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê não seja o meu.»
Nunca esquecerei estas suas palavras.
Miguel de Unamuno, in 'São Manuel Bom, Mártir'

domingo, 23 de novembro de 2008

A Moral, para o Bem e para o Mal...

Os sentimentos morais não são inatos, mas adquiridos, mas tal não significa que não são naturais, pois é natural para o homem, falar, raciocinar, construir cidades, cultivar a terra, apesar destas competências serem faculdades que são adquiridas. Os sentimentos morais, na realidade, não fazem parte da nossa natureza, se entendermos por tal que deviam estar presentes em todos nós, num grau apreciável, realidade que indubitavelmente é um facto muito lamentável, reconhecido até pelos que mais veentemente acreditam na origem transcendente destes sentimentos. No entanto, tal como as outras faculdades referidas, a faculdade moral, não fazendo embora parte da nossa natureza, vai-se desenvolvendo naturalmente; tal como as outras, pode nascer espontaneamente e, apesar de muito frágil, no início, é capaz de atingir, por influência da cultura, um grau elevado de desenvolvimento. Infelizmente, também, mas recorrendo, tanto quanto é necessário, às sanções externas, e aproveitando a influência das primeiras impressões, ela pode ser desenvolvida em qualquer direcção, ou quase, a ponto de não haver ideia, por mais absurda e perigosa que possa ser, que não se consiga impor ao espírito humano, conferindo-lhe, pelo jogo dessas influências, toda a autoridade da consciência.
John Stuart Mill, in 'Utilitarismo'

sábado, 22 de novembro de 2008

Bem e Corrupção...

Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. De facto, a corrupção é nociva, e se não diminuísse o bem, não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica - o que não é aceitável - ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum bem. Isto não admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneciam incorruptíveis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo o bem? Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem são boas. Assim sendo, todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é uma substância, pois se fosse substância seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível, e então era certamente um grande bem, ou seria substância corruptível, e nesse caso, se não fosse boa, não se poderia corromper.
Santo Agostinho, in 'Confissões'

Quando uma Terceira Pessoa fica a par de um Assunto Privado...

É impossível ultrapassar um incidente ocorrido entre duas pessoas a partir do momento em que ele deixa de ser um segredo entre elas. Pois, a partir do momento em que um terceiro, a partir do momento em que outros indivíduos não envolvidos - como não pode deixar de acontecer - são postos a par do segredo, este incidente que até então era apenas uma questão entre duas pessoas, inicia uma nova existência em consciências estranhas; assume uma nova forma, adquire um novo sentido, pode prolongar-se e repercutir-se finalmente de modo misterioso nas duas pessoas entre as quais ocorreu.
Arthur Schnitzler, in 'Relações e Solidão'

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Bem Invulgar...

Um homem a quem é dado possuir um bem invulgar não pode considerar-se um homem vulgar. Cada um é tal qual os bens que possui. Um cofre vale pelo que tem lá dentro, melhor dizendo, o cofre é um mero acessório do conteúdo. Imaginemos um saco cheio de dinheiro: que outro valor lhe atribuimos além do valor das moedas nele contidas? O mesmo se verifica com os donos de grandes patrimónios: não passam de simples acessórios, de suplementos. A razão de o sábio ser grande está na grande alma que possui. Por conseguinte, é verdade que tudo quanto está ao alcance do mais desprezível dos homens não deve ser considerado um bem. Nunca direi, por exemplo, que a insensibilidade é um bem: quer a cigarra quer o pulgão são dotados dela! Nem sequer chamarei um bem ao repouso ou à ausência de desgostos: há bicho mais repousado do que um verme?
Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O Terror como Base da Religião...

É verdade que tanto o medo como a esperança entram na religião, porque estas duas paixões, em alturas diferentes, agitam a mente humana e cada uma delas forma uma espécie de divindade que lhe é adequada. Mas, quando um homem se sente bem, ele está inclinado para os negócios, para o convívio ou para qualquer espécie de divertimento, e dedica-se naturalmente a essas actividades e não pensa em religião. Quando está melancólico e abatido, tudo o que para fazer é meditar sobre os terrores do mundo invisível, e mergulhar mais profundamente ainda na aflição. Pode realmente acontecer que, após ter assim gravado profundamente as opiniões religiosas no seu pensamento e imaginação, ocorra uma alteração da saúde ou das circunstâncias que restaure o seu bom humor e, ocasionando boas perspectivas de futuro, o faça cair no extremo oposto da alegria e triunfo. Mas, ainda assim deve reconhecer-se que, como o terror é o princípio primordial da religião, é essa a paixão que predomina nela e que só admite pequenos intervalos de prazer.
David Hume, in 'Diálogos Sobre a Religião Natural'

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Saber Falar e Calar...

É grande miséria não ter bastante inteligência para falar bem, nem bastante juízo para se calar. Eis o princípio de toda a impertinência. Dizer de uma coisa, modestamente, que é boa ou que é má, e as razões por que assim é, requer bom senso e expressão; é um problema. É mais cómodo pronunciar, em tom decisivo, não importa se prova aquilo que afirma, que ela é execrável ou que é miraculosa.
Jean de La Bruyére, in 'Os Caracteres'

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Ser Religioso com Vantagem...


Há pessoas sóbrias e industriosas, em quem a religião está bordada como uma ourela de humanidade superior: essas fazem muito bem em continuar a ser religiosas, isso embeleza-as. Todas as pessoas, que não entendem de um qualquer ofício relacionado com armas - incluindo nas armas a boca e a pena - tornam-se servis: para essa gente, a religião cristã é muito útil, pois o servilismo toma, assim, a aparência de uma virtude cristã e fica espantosamente embelezado. Pessoas, a quem a sua vida quotidiana parece demasiado vazia e monótona, tornam-se facilmente religiosas: isso é compreensível e perdoável; simplesmente, elas não têm direito de exigir religiosidade daqueles para quem a vida quotidiana não decorre vazia e monótona.
Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Apenas nas Crises Atingimos as nossas Profundezas...

Tudo o que o nosso corpo faz, excepto o exercício dos sentidos, escapa à nossa percepção. Não damos conta das funções mais vitais (circulação, digestão, etc.). O mesmo se passa com o espírito: ignoramos todos os seus movimentos e transformações, as suas crises, etc., que não sejam a superficial ideação esquematizante. Só uma doença nos revela as profundezas funcionais do nosso corpo. Do mesmo modo, pressentimos as do espírito quando estamos em crise.
Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

domingo, 16 de novembro de 2008

Relações ou Ralações...

Tenho relações ou tenho ralações? Sim, não é para brincar com a palavra, é para examinar a qualidade das nossas relações. Se são humanas e construtivas, podem trazer sofrimento e cuidado, mas fazem crescer. Mas se as nossas relações são egoístas e enganadoras, então não só trazem ralações, como são elas próprias ralações, destruições mútuas e transmissíveis. Nós somos o que forem as nossas relações.
(Padre) Vasco Pinto de Magalhães, in 'Não Há Soluções, Há Caminhos'

sábado, 15 de novembro de 2008

O Bom Senso como Suporte da Humanidade...

Se não tivesse havido em todos os tempos uma maioria de homens para fazer depender o seu orgulho, o seu dever, a sua virtude da disciplina do seu espírito, da sua «razão», dos amigos do «bom senso», para se sentirem feridos e humilhados pela menor fantasia, o menor excesso da imaginação, a humanidade já teria naufragado há muito tempo. A loucura, o seu pior perigo, não deixou nunca, com efeito, de planar por cima dela, a loucura prestes a estalar... quer dizer a irrupção da lei do bom prazer em matéria de sentimento de sensações visuais ou auditivas, o direito de gozar com o jorro do espírito e de considerar como um prazer a irrisão humana. Não são a verdade, a certeza que estão nos antípodas do mundo dos insensatos; é a crença obrigatória e geral, é a exclusão do bom prazer no ajuizar. O maior trabalho dos homens foi até agora concordar sobre uma quantidade de coisas, e fazer uma lei desse acordo,... quer essas coisas fossem verdadeiras ou falsas. Foi a disciplina do espírito que preservou a humanidade,... mas os instintos que a combatem são ainda tão poderosos que em suma só se pode falar com pouca confiança no futuro da humanidade.
Friedrich Nietzsche, in 'A Gaia Ciência'

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Hoje Toda a Gente se Trata por Tu...

Hoje toda a gente se trata por tu, já deves ter reparado, é uma forma despachada e falsamente confidencial. Eu não gosto, por­que é inconveniente... Acho que quando duas pessoas se esti­mam devem tratar-se por você, é uma forma que revela civilidade e respeito pelo outro. E além disso marca aquela distância necessária para exprimirmos mutuamente que apesar de nos conhecermos bem, intimamente, até, e de sabermos os nossos respectivos segredos, continuamos a fazer de conta que não, que não sabemos certas coisas, e fazemo-lo para que o outro se sinta mais à-vontade, como quando alguém te confessou uma coisa importante que não diria a ninguém, mas era como se estivesses distraído, claro que não é bem assim, ouviste-o com muita aten­ção, mas... lá está, é como se já não estivesses a pensar nisso, guardaste aquilo num compartimento secreto do teu coração e fechaste-o à chave...
António Tabucchi, in 'Tristano Morre'

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Bom Senso...


O bom senso não exige um juízo muito profundo; parece antes consistir em só perceber os objectos na proporção exacta que eles têm com a nossa natrueza ou com a nossa condição. O bom senso não consiste então em pensar sobre as coisas com excesso de sagacidade, mas em concebê-las de maneira útil, em tomá-las no bom sentido. Aquele que vê com um microscópio percebe, certamente, mais qualidade nas coisas; mas não as percebe na sua proporção natural com a natureza do homem, como quem usa apenas os olhos. Imagem dos espíritos subtis, eles às vezes penetram fundo demais; quem olha naturalmente as coisas tem bom senso. O bom senso forma-se a partir de um gosto natural pela justeza e pelo mediano; é uma qualidade do carácter, mais do que do espírito. Para ter muito bom senso, é preciso ser feito de maneira que a razão predomine sobre o sentimento, a experiência sobre o raciocínio.

Luc de Clapiers Vauvenargues, in 'Das Leis do Espírito'

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Os Convencidos da Vida...

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear. Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força. Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista. Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?
(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil. Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro. Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.
Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Amar ou Ser Amado???

Que é o que mais deseja e mais estima o amor: ver-se conhecido ou ver-se pago? É certo que o amor não pode ser pago, sem ser primeiro conhecido; mas pode ser conhecido, sem ser pago. E considerando divididos estes dois termos, não há dúvida que mais estima o amor e melhor lhe está ver-se conhecido que pago. Porque o que o amor mais pretende, é obrigar; o conhecimento obriga, a paga desempenha. Logo muito melhor lhe está ao amor ver-se conhecido que pago; porque o conhecimento aperta as obrigações, a paga e o desempenho desata-as. O conhecimento é satisfação do amor próprio; a paga é satisfação do amor alheio. Na satisfação do que o amor recebe, pode ser o afecto interessado; na satisfação do que comunica, não pode ser senão liberal. Logo, mais deve estimar o amor ter segura no conhecimento a satisfação da sua liberalidade, que ver duvidosa na paga a fidalguia do seu desinteresse. O mais seguro crédito de quem ama, é a confissão da dívida no amado; mas como há-de confessar a dívida, quem a não conhece? Mais lhe importa logo ao amor o conhecimento que a paga; porque a sua maior riqueza é ter sempre individado a quem ama. Quando o amor deixa de ser credor, só então é pobre. Finalmente, ser tão grande o amor que se não possa pagar, é a maior glória de quem ama: se esta grandeza se conhece, é glória manifesta; se não se conhece, fica escurecida, e não é glória. Logo, muito mais estima o amor, e muito mais deseja e muito mais lhe convém a glória de conhecido, que a satisfação de pago.
Padre António Vieira, in "Sermões Escolhidos (Sermão do Mandato)"

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Nós Nunca Nos Entendemos...


Após uma boa hora de conversa, entendemo-nos perfeitamente. Amanhã vem ter comigo com as mãos na cabeça, gritando:
- Como é possível? O que é que você percebeu? Não me disse isto e isto?
Isto e isto, perfeitamente. Mas o problema é que você, meu caro, nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que você me disse. Não falou turco, não. Eu e você usámos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, você preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensámos que nos entendíamos; de facto, não nos entendemos. E conto velho também é o facto de o sabermos. Eu não pretendo dizer nada de novo. Apenas volto a perguntar-lhe:
- Porque continua, então, a proceder como se não o soubesse? Porque continua a falar-me de si se sabe que para ser para mim como é para você mesmo e para eu ser, para si, como sou para mim, seria preciso que eu, dentro de mim, lhe desse a mesma realidade que você dá a si mesmo, e vice-versa, e isso não é possível?
Infelizmente, meu caro, faça o que fizer, dar-me-á sempre uma realidade à sua maneira, mesmo acreditando de boa-fé que é à minha maneira; e será, não digo que não; talvez seja; mas um «à minha maneira» que eu não conheço nem poderei nunca conhecer; que apenas você, que me vê de fora, conhecerá: portanto, um «à minha maneira» para si, não um «à minha maneira para mim».
Luigi Pirandello, in "Um, Ninguém e Cem Mil"

domingo, 9 de novembro de 2008

Amar um Ser é Matar todos os outros...


Não há uma coisa que se faça por um ser (que se faça verdadeiramente) que não negue um outro. E quando não nos podemos resignar a negar os seres, há uma lei que nos estiriliza para sempre. De certo modo, amar um ser é matar todos os outros.
Albert Camus, in 'Cadernos'

sábado, 8 de novembro de 2008

A Necessidade do Próximo...

Nós só sentimos agrado para com os semelhantes - ou seja pelas imagens de nós próprios - quando sentimos comprazimento connosco. E quanto mais estamos contentes connosco, mais detestamos o que nos é estranho: a aversão pelo que nos é estranho está na proporção da estima que temos por nós. É em consequência dessa aversão que nós destruímos tudo o que é estranho, ao qual assim mostramos o nosso distanciamento.
Mas o menosprezo por nós próprios pode levar-nos a uma compaixão geral para com a humanidade e pode ser utilizado, intencionalmente, para uma aproximação com os demais.
Temos necessidade do próximo para nos esquecermos de nós mesmos: o que leva à sociabilidade com muita gente.
Somos dados a supor que também os outros têm desgosto com o que são; quando isto se verifica, então receberemos uma grande alegria: afinal, estamos na mesma situação.
E, talqualmente nos vemos forçados a suportar-nos, apesar do desgosto que temos com aquilo que somos, assim nos habituamos a suportar os nossos semelhantes.
Assim, nós deixamos de desprezar os outros; a aversão para com eles diminui, e dá-se a reaproximação.
Eis porque, em virtude da doutrina do pecado e da condenação universal, o homem se aproxima de si mesmo. E até aqueles que detêm efectivamente o poder são de considerar, agora como dantes, sob este mesmo aspecto: é que, «no fundo, são uns pobres homens».
Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O Explendor da Heterosexualidade, pelo Desejo...

Somos um objecto, na paixão, totalmente submissos, sem poder prever os golpes que sofremos; aí reside a grandeza, a loucura, o assombro da paixão. Para mim, o desejo só pode ter lugar entre o masculino e o feminino, entre sexos diferentes. O outro desejo é um autodesejo, é, para mim, como que o prolongamento da prática masturbatória do homem ou da mulher. O esplendor da paixão, a sua imensidade, o seu sofrimento, o seu inferno, reside no facto de só poder verificar-se entre géneros irreconciliáveis, o masculino e o feminino. Tanto a paixão como o desejo.
Os casais homossexuais são muito mais estáveis do que os casais heterossexuais, porque na homosexualidade há uma prática simples e cómoda do desejo. A prática heterossexual é ainda selvagem, é ainda a floresta do desejo. Na prática homossexual não creio que exista esse fenómeno de posse que existe na heterossexual. Na prática homossexual existe uma espécie de intermutabilidade do prazer, as pessoas nunca pertencem na homossexualidade como pertencem na heterossexualidade. É um inferno não se poder escapar ao desejo de uma pessoa, é a isso que eu chamo, quando a mim, o esplendor da heterossexualidade.

Marguerite Duras, in 'Mundo Exterior '

No Amor o Homem deve tomar a iniciativa....

O pudor inibe a mulher de provocar certas carícias, mas sente prazer em recebê-las quando outro as começa. Sim, um homem tem em demasiada conta as suas qualidades físicas, se espera que seja a mulher a primeira a rogar. É ao homem que compete começar, é ao homem que compete pronunciar as palavras suplicantes; a ela acolher favorávelmente as suas brandas preces. Queres possuí-la? pede. Ela deseja tanto como tu ser rogada. Explica-lhe a causa e a origem do teu amor. Júpiter dirigia-se suplicante às antigas heroínas; apesar do seu poder, nenhuma o vinha provocar. Mas se as tuas preces se quebram na distância dum orgulho desdenhoso, abandona o que começaste e recua. Como elas desejam o que lhes escapa, e detestam o que está ao seu alcance! Sendo menos insistente, não mais serás repelido. E a esperança de alcançares os teus fins nem sempre deve aparecer nos teus pedidos; que o amor penetre sob o nome da amizade. Vi mulheres esquivas serem enganadas desta maneira: o que fora seu cortesão, tornara-se seu amante.
Ovídio, in "A Arte de Amar"

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Não Alardear a Boa Sorte ...

Mais ofende ostentar a dignidade que a pessoa. Fazer-se de grande homem é odioso: bastaria ser invejado. Quanto mais se busca estima menos se a consegue. Ela depende do respeito alheio, e, assim, não pode ser tomada, mas merecida e aguardada. Os grandes cargos demandam autoridade ajustada ao seu exercício, sem o que não podem ser dignamente exercidos. Conserve a que merece para cumprir com o substancial das suas obrigações: não a esgote, ajude-a sim; e todos os que se fazem de aquinhoados no cargo dão indício de que não o mereciam, e que a dignidade a tudo se sobrepõe. Quem quiser ter merecimentos, que seja antes pela eminência dos seus dotes que pelo seu adventício, pois até um rei há-de ser mais venerado pela sua pessoa que pela extrínseca soberania.
Baltasar Gracián y Morales, in 'A Arte da Prudência

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Regras Básicas de Avaliação do Amante


Para avaliar o amor da vossa amante, lembrai-vos: 1º - De que, quanto mais prazer físico entrou na base do vosso amor, no que noutros tempos determinou a intimidade, tanto mais ele está sujeito à infidelidade. Isto aplica-se sobretudo aos amores cuja cristalização foi favorecida pelo fogo da juventude, aos dezasseis anos. 2º - De que o amor de duas pessoas que amam não é quase nunca o mesmo. O amor-paixão tem as suas fases durante as quais, e sucessivamente, um dos dois ama mais que o outro. Muitas vezes a simples galanteria ou o amor de vaidade responde ao amor-paixão, e é sobretudo a mulher que ama com exaltação. Qualquer que seja o amor sentido por um dos dois amantes, a partir do momento em que sente cíumes, exige do outro que preencha as condições do amor-paixão; a vaidade simula nele todas as necessidades de um coração terno. Finalmente, nada aborrece tanto o amor-gosto como a existência do amor-paixão no outro ou outra. Muitas vezes um homem de espírito, ao fazer a corte a uma mulher, não consegue senão fazê-la pensar no amor e enternecer-lhe a alma. Ela recebe bem este homem que lhe dá um tal prazer. Ele começa a alimentar esperanças. Um belo dia essa mulher encontra o homem que lhe faz sentir o que o outro lhe descreveu.

Stendhal, in "Do Amor"

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Deixa o que Seduz a Multidão...

Se nós nada fizermos senão de acordo com os ditames da razão, também nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. Se quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de uma vez por todas tudo quanto seduz a multidão! Deixa a riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser rico; deixa os prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amolecer as energias; deixa a ambição que não passa de uma coisa artificialmente empolada, inútil, inconsciente, incapaz de reconhecer limites, tão interessada em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de facto é infeliz quem, objecto de inveja ele próprio, tem inveja por outros. Não estás a ver essas casas dos grandes senhores, as suas portas cheias de clientes que se atropelam na entrada? Para lá entrares, teria de sujeitar-te a inúmeras injúrias, mas mais ainda terias de suportar se entrasses. Passa frente às escadarias dos ricos senhores, aos seus átrios suspensos como terraços: se lá puseres os pés será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa prestes a ruir. Dirige ante os teus passos na via da sapiência, procura os seus domínios cheios de tranquilidade, mas também de horizontes ilimitados. Tudo quanto entre os homens é tomado como coisa eminente, muito embora de valor reduzido e só notável em comparação com as coisas mais rasteiras, mesmo assim só é acessível através de difíceis e duros atalhos. A via que conduz ao cume da dignidade é extremamente árdua; mas se te dispuseres a trepar até estas alturas sobre as quais a fortuna não tem poder, então poderás ver a teus pés tudo quanto a opinião vulgar considera eminentíssimo, e desse ponto em diante o teu caminho será plano até ao supremo bem.
Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Na Sociedade é a Razão a Primeira a Ser Vencida...

Na sociedade é a razão a primeira a ser vencida. Os mais ajuizados são frequentemente dirigidos pelo mais louco e extravagante: estuda-se o seu ponto fraco, o seu humor, os seus caprichos; acomoda-se a ele; evita-se feri-lo; todo o mundo cede a ele: a menor serenidade que aparece na sua fisionomia basta para lhe atrair elogios; acham-no óptimo por não ser sempre insuportável. É temido, considerado, obedecido, e às vezes amado. Só aqueles que tiveram velhos parentes colaterais, ou que os têm ainda, dos quais se espera herdar, podem dizer o que isso custa.
Jean de La Bruyére, in "Os Caracteres"

domingo, 2 de novembro de 2008

Amor e Posse...

Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. Por eu amar a Deus, meto-me a pé pela estrada fora, coxeando penosamente para o levar aos outros homens. E não reduzo o meu Deus à escravatura. E sou alimentado com o que ele dá a outros. Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.
Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

sábado, 1 de novembro de 2008

Pensamento do Dia...

Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar...