sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Lazer- intervalos de lucidez numa vida desregrada.

Nada Vence a Vontade...

A doença é um estorvo para o corpo, mas não para a vontade se ela não o desejar. O ser-se coxo é um estorvo para as pernas, mas não o é para a vontade. Assim pondera todo e qualquer acidente, e chegarás à conclusão de que o acidente estorva sempre uma ou outra coisa - e que só para ti, movido de vontade, não é estorvo de espécie alguma.
Epicteto, in 'Manual'

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Destino Sem Medo...

O homem que acha que os segredos do mundo são para sempre insondáveis vive no mistério e no medo. A superstição arrasta-o para o abismo. A chuva acabará por esfarelar os feitos da sua existência. Mas do homem que atribui a si mesmo a tarefa de isolar da trama do cosmos o fio da ordem podemos dizer que, com essa simples decisão, tomou as rédeas do mundo nas suas mãos e só dessa forma conseguirá ditar os termos do seu próprio destino.
Cormac McCarthy, in 'Meridiano de Sangue'

Dicionário do Diabo...

Falar- cometer uma indiscrição sem tentação, motivado por um impulso sem finalidade.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Português Sentimental e com Horror à Disciplina...

Excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção. A própria facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e brilho da sua inteligência. Mas quando enquadrado, convenientemente dirigido, o português dá tudo quanto se quer... O nosso grande problema é o da formação das elites que eduquem e dirijam a Nação. A sua fraqueza ou deficiência é a mais grave crise nacional. Só as gerações em marcha, se devidamente aproveitadas, nos fornecerão os dirigentes - governantes, técnicos, professores, sacerdotes, chefes do trabalho, operários especializados - indispensáveis à nossa completa renovação. Considero até mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar toda a gente a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas.
António de Oliveira Salazar, in 'Homens e Multidões', de António Ferro

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A Crise do Idealismo...

Cada vez será menor a «elite» que os possui [valores], perante o desvairo do nosso tempo em que a sede dos prazeres materiais e a dissolução dos costumes, apoiadas por uma organização industrial ad hoc, corromperam a riqueza e as suas fontes, o trabalho e as suas aplicações, a família e o seu valor social. Há no Mundo uma grande crise do idealismo, do espiritualismo de virtudes cívicas e morais, e não parece que sem eles possamos vencer as dificuldades do nosso tempo. Sem rectificarmos a série de valores com que lidamos - valores económicos e morais - , sem outro conceito diverso da civilização e do progresso humano, sem ao espírito ser dada primazia sobre a matéria e à moral sobre os instintos, a humanidade não curará os seus males e nem sequer tirará lucro do seu sofrimento.
António de Oliveira Salazar, in 'Entrevista ao Diário de Notícias (1936)'

domingo, 25 de janeiro de 2009

Saber Estar...

És impaciente e difícil de contentar. Se estás só, queixas-te da solidão; se na companhia dos outros, tu os chamas de conspiradores e de ladrões, e achas defeitos nos teus próprios pais, filhos, irmãos e vizinhos. No entanto, quando estás sozinho, deves falar em tranquilidade e liberdade e te considerares igual aos deuses. E quando estás em companhia numerosa, não a deves chamar de turba aborrecida ou ruidosa, mas de assembleia e tribunal, dessarte aceitando tudo com contentamento.
Epicteto, in 'O Festival Da Vida'

Dicionário do Diabo...

Expectativa: estado ou condição mental que, no cortejo das emoções humanas, é precedido pela esperança e seguido pelo desespero.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Nada Vence a Vontade...

A doença é um estorvo para o corpo, mas não para a vontade se ela não o desejar. O ser-se coxo é um estorvo para as pernas, mas não o é para a vontade. Assim pondera todo e qualquer acidente, e chegarás à conclusão de que o acidente estorva sempre uma ou outra coisa - e que só para ti, movido de vontade, não é estorvo de espécie alguma.
Epicteto, in 'Manual'

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Intolerante: indivíduo que está obstinada e zelosamente vinculado a uma opinião que não partilhamos.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Ignorante- uma pessoa que desconhece certas coisas que nos são familiares, conhecendo outras coisas das quais nunca ouvimos falar.

Nunca te Intitules Filósofo...

Nunca te intitules Filósofo nem fales demasiado sobre os Princípios com os iletrados; faz, antes, o que deles decorre. Assim, num banquete, não discutas como devem as pessoas comer, mas come como é devido. Lembra que Sócrates evitava inteiramente a ostentação. As pessoas vinham a ele encaminhadas a filósofos, e ele próprio as encaminhava, tão bem suportava ser desdenhado. Da mesma maneira, se alguma conversa relativa a princípios ocorrer entre os iletrados, procura guardar silêncio. Pois corres o risco de vomitar o que digeriste mal. E quando alguém te disser que não sabes nada e tu não te apoquentares com isso, podes estar certo que estás finalmente no bom caminho.
Epicto, in "MANUAL"

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Discussão: um método para demonstrar os erros dos outros.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo---

Religião - uma filha da Esperança e do Medo, que explica à Ignorância a natureza do Desconhecido.

Dicionário do Diabo...

Fé- crença, não baseada em provas, no que é contado por alguém que fala sem conhecimento de coisas sem paralelo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Riso- uma convulsão interior, que produz uma distorção da expressão facial e que é acompanhada por sons desarticulados. É contagioso e, embora intermitente, incurável.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Reflexão...

"...Há tão pouca distância entre a felicidade e a infelicidade, que apenas as separa uma pequena sílaba e diferem uma da outra em duas letras..."
Lucius Annaeus Seneca

Dicionário do Diabo...

Homem- um animal tão perdido na contemplação voluptuosa daquilo que pensa que é que se esquece de reflectir sobre aquilo que deveria ser. A sua actividade principal é o extermínio dos outros animais e da sua própria espécie, que, no entanto, se multiplica com tal rapidez que já infesta todo o mundo habitável.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Litígio- uma máquina na qual se entra como um porco e se sai como uma salsicha.

Horizontes da Eternidade...


A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.
Ludwig Wittgenstein, in 'Tratado Lógico-Filosófico'

domingo, 11 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Litigante- uma pessoa que se prepara para trocar a pele pela esperança de ficar com os ossos.

Tirar Proveito da Vida...

Tudo o que viveis, estais roubando à vida, e à custa dela. O trabalho contínuo da vossa vida é construir a morte. Estais na morte enquanto estais em vida, pois estais após a morte quando já não estais em vida. Ou, se assim preferis, estais morto após a vida; mas durante a vida estais moribundo, e a morte toca bem mais rudemente o moribundo que o morto, e mais vivamente e essencialmente. Se tiraste proveito da vida, estais saciado; podeis sair dela satisfeito, Por que não sair da vida como conviva saciado? (Lucrécio), se não soubeste fazer uso dela, se ela vos era inútil, que vos importa tê-la perdido, para que a quereis ainda? Por que desejar multiplicar dias que do mesmo jeito deixarias perder miseravelmente e que desapareceriam totalmente sem proveito? (Lucrécio). A vida por si só não é nem bem nem mal: é o lugar do bem e do mal conforme a fazeis para eles.
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

sábado, 10 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Médico- um cavalheiro que prospera com doenças e morre com saúde.

Ninguém Morre Antes da Hora...


Ninguém morre antes da hora. O que deixais de tempo não era mais vosso do que o tempo que se passou antes do vosso nascimento; e tampouco vos importa, Com efeito, considerai como a eternidade do tempo passado nada é para nós (Lucrécio). Termine a vossa vida quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu longo tempo e no entanto pouco viveu; atentai para isso enquanto estais aqui. Terdes vivido o bastante depende da vossa vontade, não do número de anos. Pensáveis nunca chegar aonde estáveis indo incessantemente? E no entanto não há caminho que não tenha o seu fim. E, se a companhia vos pode consolar, não vai o mundo no mesmo passo em que ides? Todas as coisas seguir-vos-ão na morte (Lucrécio). Tudo não dança a vossa dança? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem nesse mesmo instante em que morreis: Pois nunca a noite sucedeu ao dia, nem a aurora à noite, sem ouvir, mesclados aos vagidos da criança, os gritos de dor que acompanham a morte e os negros funerais (Lucrécio).
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Mortalidade- a parte da imortalidade que já conhecemos.

Aprender a Morrer para Saber Viver...


Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso porque de certa forma o estudo e a contemplação retiram a nossa alma para fora de nós e ocupam-na longe do corpo, o que é um certo aprendizado e representação da morte; ou então porque toda a sabedoria e discernimento do mundo se resolvem por fim no ponto de nos ensinarem a não termos medo de morrer. Na verdade, ou a razão se abstém ou ela deve visar apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve ter como objectivo, em suma, fazer-nos viver bem e ao nosso gosto, como dizem as Santas Escrituras. Todas as opiniões do mundo coincidem em que o prazer é a nossa meta, embora adoptem meios diferentes para isso; de outra forma as rejeitaríamos logo de início, pois quem escutaria alguém que estabelecesse como fim o nosso penar e descontentamento?
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Injustiça- de todos os fardos que depositamos nos outros e que carregamos nós próprios, é o mais leve nas mãos e o mais pesado nas costas.

A Justa Medida...

As necessidades do corpo são a justa medida do que cada um de nós deve possuir. Exemplo: o pé só exige um sapato à sua medida. Se assim considerares as coisas, respeitarás em tudo quanto faças as devidas proporções. Se ultrapassares estas proporções, serás, por tal maneira de agir, necessariamente desregrado como se um precipício te seduzisse. O sapato é exemplo ainda deste estado de coisas: se fores para além do que o teu pé necessita, não tardará muito que anseies por um sapato dourado, por um sapato de púrpura depois, finalmente por um sapato bordado. Uma vez que se menospreze a justa medida, deixa de haver qualquer limite que justos torne os nossos propósitos.
Epicteto, in 'Manual'

Quem Aprendeu a Morrer Desaprendeu de Servir...

Os homens vão, vêm, andam, dançam, e nenhuma notícia de morte. Tudo isso é muito bonito. Mas, também quando ela chega, ou para eles, ou para as suas mulheres, filhos e amigos, surpreendendo-os imprevistamente e sem defesa, que tormentos, que gritos, que dor e que desespero os abatem! Já vistes algum dia algo tão rebaixado, tão mudado, tão confuso? É preciso preparar-se mais cedo para ela; e essa despreocupação de animal, caso pudesse instalar-se na cabeça de um homem inteligente, o que considero inteiramente impossível, vende-nos caro demais a sua mercadoria. Se fosse um inimigo que pudéssemos evitar, eu aconselharia a adoptar as armas da cobardia. Mas, como isso não é possível, como ele vos alcança fugitivo e poltrão tanto quanto corajoso, De facto ele persegue o cobarde que lhe foge, e não poupa os jarretes e o dorso poltrão de uma juventude sem coragem (Horácio), e que nenhuma ilusão de couraça vos encobre, Inútil esconder-se prudentemente sob o ferro e o bronze: a morte saberá fazer-se expôr à cabeça que se esconde (Propércio), aprendamos a enfrentá-lo de pé firme e a combatê-lo. E, para começar a roubar-lhe a sua maior vantagem contra nós, tomemos um caminho totalmente contrário ao habitual.
Eliminemos-lhe a estranheza, trilhemo-lo, acostumemo-nos a ele. Não pensemos em nenhuma outra coisa com tanta frequência quanto na morte. A todo o instante representemo-la à nossa imaginação, e sob todos os aspectos. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, ruminemos imediatamente: «Pois bem, quando será a morte mesma?» E diante disso enrijeçamo-nos e fortifiquemo-nos. Pelo meio às festas e à alegria, conservemos esse refrão da lembrança da nossa condição, e não nos deixemos arrastar ao prazer tão intensamente que por vezes não volte a passar-nos na lembrança sob quantas formas o nosso regozijo está na mira da morte, e com quantos ataques ela o ameaça. Assim faziam os egípcios, que, pelo meio dos seus festins e no melhor divertimento, mandavam trazer o esqueleto de um corpo de homem morto, para servir de advertência aos convivas, Imagina que cada dia que brilha é para ti o dia supremo; receberás com reconhecimento a hora com que não havias contado (Horácio). É incerto onde a morte nos espera; esperemo-la em toda a parte. A premeditação da morte é premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e imposição. Na vida não existe mal para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal.

Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

Dicionário do Diabo...

Oportunidade- uma ocasião favorável para agarrar uma desilusão.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Ócio-uma quinta-modelo na qual o Diabo experimenta as sementes de novos pecados e cultiva os vícios de primeira necessidade.

O Politíco Português...

Para o bom português, meus Senhores, a carreira verdadeiramente ideal é aquela que não exija preparação e em que se não faça nada sob a aparência de que se faz alguma coisa. (Porque em suma ele envergonha-se de o chamarem preguiçoso). Ora desde os tempos em que Spencer, um pouco irreverentemente, é verdade, vinha declarar que, «exigindo-se uma longa aprendizagem para se fazerem sapatos, não era precisa nem pequena nem grande para se fazerem leis», o caminho, hão-de concordar, estava naturalmente traçado. Demais aquele velho Aristóteles, que foi filósofo na antiga Grécia, escreveu ingenuamente um dia que a política era a dificílima arte de os indivíduos governarem os povos. Já lá vão séculos porém. O tempo tudo altera; alterou também a ideia: hoje é a mais fácil arte de os povos governarem os indivíduos.
António de Oliveira Salazar, in 'Inéditos e Dispersos Políticos'

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Paraíso- um sítio onde os maus deixam de nos aborrecer com os seus assuntos pessoais, e os bons ouvem atentamente quando contamos os nossos.

O Ateu é Deus...

Deus não existe (...) A salvação de todos consiste agora em provar essa ideia a toda a gente, percebes? Quem é que há-de prová-la? Eu! Não entendo como é que até agora um ateu podia saber que Deus não existe e não se suicidava logo. Reconhecer que Deus não existe e não reconhecer ao mesmo tempo que o próprio se tornou deus é um absurdo, pois de outra maneira suicidar-se-ia inevitavelmente. Se tu o reconheces, és um rei e não te matarás, mas viverás na maior glória. Mas só o primeiro a perceber isso é que deve inevitavelmente matar-se, senão o que é que principiaria e provaria? Sou eu que me vou suicidar para iniciar e para provar. Ainda só sou deus sem querer e sofro porque tenho o DEVER de proclamar a minha própria vontade. Todos são infelizes porque todos têm medo de afirmar a sua vontade. Se o homem até hoje tem sido tão infeliz e tão pobre, é precisamente porque tem tido medo de afirmar o ponto capital da sua vontade, recorrendo a ela às escondidas como um jovem estudante. Eu sou profundamente infeliz porque tenho medo profundamente. O medo é a maldição do homem... Mas hei-de proclamar a minha vontade, tenho o dever de crer que não creio. E serei salvo. Só isto salvará todos os homens e há-de transformá-los fisicamente, na geração seguinte; porque, no seu estado físico actual (reflecti nisso muito tempo), o homem não pode, de modo algum, passar sem o seu velho Deus. Durante três anos procurei o atributo da minha divindade e achei-o: o atributo da minha divindade é a minha vontade, é o livre arbítrio. É com isso que posso manifestar sobre o ponto capital a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova. Porque é terrível! Mato-me para afirmar a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova.
Fiodor Dostoievski, in 'Os Possessos' (discurso do personagem Kirilov)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Planear- pensar no melhor método para atingir um resultado acidental.

A Criação de Deus como Travão dos Instintos...

Uma obrigação para com Deus: esta ideia foi porém o instrumento de tortura. Imaginou-se Deus como um contraste dos seus próprios instintos animais (do homem) e irresistíveis e deste modo transformou estes instintos em faltas para com Deus, hostilidade, rebelião contra o «Senhor», «Pai» e «Princípio do mundo», e colocando-se galantemente entre «Deus» e o «Diabo» negou a Natureza para afirmar o real, o vivo, overdadeiro Deus, Deus santo, Deus justo, Deus castigador, Deus sobrenatural, suplício infinito, inferno, grandeza incomensurável do castigo e da falta. Há uma espécie de demência da vontade nesta crueldade psíquica. Esta vontade de se achar culpado e réprobo até ao infinito; esta vontade de ver-se castigado eternamente; esta vontade de tornar funesto o profundo sentimento de todas as coisas e de fechar a saída deste labirinto de ideias fixas; esta vontade de erigir um ideal, o ideal de «Deus santo, santo, santo», para dar-se meçhor conta da própria indignidade absoluta... Oh, triste e louca besta humana!
A que imaginações contra natura, a que paroxismo de demência, a que a bestialidade de ideia se deixa arrastar, quando se lhe impede ser besta de acção!... Tudo isto é muito interessante, mas quando se olha para o fundo deste abismo, sentem-se vertigens de tristeza enervante. Não há dúvida de que isto é uma doença, a mais terrível que tem havido entre os homens e aquele cujos ouvidos sejam capazes de ouvir, nesta negra noite de tortura e de absurdo, o grito de amor, o grito de êxtase e de desejo, o grito de redenção por amor, será presa de horror invencível... Há tantas coisas no homem que infudem espanto! Foi por tanto tempo a terra um asilo de dementes!

Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral'

domingo, 4 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Privilégio- ser autorizado a respirar, sem ter de subornar alguém primeiro.

O Homem é um Deus que se Ignora...

Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe - dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuveado das visões do profeta esta outra palavra de consolação - dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois génios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois pólos extremos da história antiga, através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o génio luminoso e humano das raças índicas e o génio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos se enviam, como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angústia do seu caos - o homem é um Deus que se ignora.
Grande, soberana consolação de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral no coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes, no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos ! Primeiro encontro, santo e puríssimo, dos prometidos da história! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares tímidos mas leais desses noivos formosíssimos, que o tempo aproximava assim para o casamento misterioso das raças! Não há no mundo palácio de rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confindências! Só um templo, alto como a cúpula do céu, largo como o voo do desejo, puro como a esperança do primeiro e inocente ideal humano! Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo - dentro do homem está Deus.
Antero de Quental, in 'Prosas da Época de Coimbra'

sábado, 3 de janeiro de 2009

Vaga, no Azul Amplo Solta...

Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Dicionário do Diabo...

Sucesso- o único pecado imperdoável cometido contra os nossos semelhantes.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A Guerra é Deus...

Pouco interessa o que os homens pensam da guerra, disse o juiz. A guerra perdura. É o mesmo que perguntar-lhes o que acham da pedra. A guerra sempre esteve presente. Antes de o homem existir, a guerra já estava à espera dele. O ofício supremo a aguardar o seu supremo artífice. Sempre foi assim e sempre assim será. Assim e não de outra forma. (...) Os homens nasceram para jogar. Nada mais. Todo o garoto sabe que a brincadeira é uma ocupação mais nobre do que o trabalho. Sabe também que a excelência ou mérito de um jogo não é inerente ao jogo em si, mas reside, isso sim, no valor daquilo que os jogadores arriscam. Os jogos de azar exigem que se façam apostas, sem o que não fazem sequer sentido. Os desportos implicam medir a destreza e a força dos adversários e a humilhação da derrota e o orgulho da vitória constituem em si mesmos aposta suficiente, pois traduzem o valor dos contendores e definem-nos. Porém, quer se trate de contendas cuja sorte se decide pelo azar quer pelo mérito, todos os jogos anseiam elevar-se à condição da guerra, pois nesta aquilo que se aposta devora tudo, o jogo, os jogadores, tudo.
Imaginem dois homens a jogar às cartas que nada têm para apostar a não ser as próprias vidas. Quem é que não ouviu já uma história assim? Uma carta virada. Para um tal jogador, a laboriosa progressão do universo inteiro veio desembocar naquele momento decisivo que irá decidir se é ele que vai morrer às mãos do adversário ou o inverso. Haverá certificação mais segura do valor de um homem? Este engrandecimento do jogo até ao seu estado supremo não admite discussão em torno do conceito de destino. A escolha de um homem em detrimento de outro é uma preferência absoluta e irrevogável e só uma pessoa destituída de inteligência poderia imaginar uma decisão tão profunda sem que a ela presidisse um qualquer intento ou significado de ordem superior. Nos jogos que têm como objecitvo a aniquilação do vencido, as decisões são muito claras. Este homem, que tem nas mãos esta combinação particular de cartas, vê a sua existência chegar ao fim por esse motivo. Eis a natureza da guerra, cujo prémio é a um tempo o jogo e a autoridade e a justificação. Vista desta maneira, a guerra é a forma mais genuína de adivinhação. É pôr à prova a nossa vontade e a vontade de outrem no quadro daquela vontade mais vasta que, pelo facto de vincular todas as vontades individuais, é obrigada a escolher. A guerra é o jogo supremo porque representa, em última análise, o romper da unidade da existência. A guerra é deus.
Cormac McCarthy, in 'Meridiano de Sangue'

Dicionário do Diabo...

Júri- um conjunto de pessoas designadas pelo tribunal para ajudar os advogados a evitar que a lei degenere e se transforme em justiça.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Dicionário do Diabo...

Lar- o sítio de último recurso - aberto toda a noite.

O Homem Corrige Deus...

Nós encontramos o soldado em várias espécies inferiores. A formiga tem exércitos e creio que polícia civil. Qualquer obscuro passarinho é um autêntico Bleriot. Não há industrial alemão que se aproxime da abelha. O canto do galo e os versos da Ilíada. João de Deus e o rouxinol, o castor e o arquitecto, a sub-marinha e os tubarões, representam cousas e criaturas que se confundem... Mas o Filósofo revela-se apenas no homem. A Filosofia é o sinal luminoso que o destaca da mesquinha escuridade ambiente... Só o homem é susceptível de magicar, de refazer a Criação à sua imagem... O homem corrige Deus.
Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"