quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Liberdade só Existe com Lei e Poder...

Liberdade e lei (pela qual a liberdade é limitada) são os dois eixos em torno dos quais gira a legislação civil. Mas, a fim de que a lei seja eficaz, em vez de ser uma simples recomendação, deve ser acrescentado um meio-termo, o poder, que, ligado aos princípios da liberdade, garanta o sucesso dos da lei. É possível conceber apenas quatro formas de combinação desse único elemento com os dois primeiros: A. Lei e liberdade sem poder (Anarquia). B. Lei e poder sem liberdade (Despotismo). C. Poder sem liberdade nem lei (Barbárie). D. Poder com liberdade e lei (República).
Emmanuel Kant, in 'Antropologia do Ponto de Vista Pragmático'

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Uma Pessoa...

Uma pessoa é esse sujeito cujas acções são susceptíveis de imputação. A personalidade moral nada mais é do que a liberdade de um ser razoável sob as leis morais. Em compensação, a personalidade psicológica não passa da faculdade de ser consciente da sua existência como idêntica através de diferentes estados. Segue-se que uma pessoa não pode ser submetida a outras leis que não àquelas que ela própria se confere (ou sozinha, ou pelo menos a si mesma ao mesmo tempo que com outros).
Emmanuel Kant, in 'Metafísica dos Costumes'

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Lado Obscuro de cada um de Nós...

Passou no seu casamento por aquilo que é quase um facto universal - os indivíduos são diferentes uns dos outros. Basicamente, constituem um para o outro um enigma indecifrável. Nunca existe acordo total. Se cometeu algum erro, esse erro consistiu em ter-se esforçado demasiadamente por compreender totalmente a sua mulher e por não ter contado com o facto de, no fundo, as pessoas não quererem saber que segredos estão adormecidos na sua alma. Quando nos esforçamos demasiado por penetrar noutra pessoa, descobrimos que a impelimos para uma posição defensiva e que ela cria resistências porque, nos nossos esforços para penetrar e compreender, ela sente-se forçada a examinar aquelas coisas em si mesma que não desejava examinar. Toda a gente tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não conhecer.
Mas isto não é erro seu. É uma verdade humana universal que é indubitavelmente verdadeira, mesmo que haja imensas pessoas que lhe garantam desejar saber tudo delas próprias. É muito provável que a sua mulher tivesse muitos pensamentos e sentimentos que a tornassem desconfortável e que ela desejava ocultar de si mesma. Isto é simplesmente humano. É também por este motivo que tantas pessoas idosas se refugiam na própria solidão, onde não serão incomodadas. E é sempre sobre coisas de que elas não desejariam estar muito cientes. O senhor não é, obviamente, responsável pela existência destes conteúdos psíquicos. Se, apesar disto, ainda for atormentado por sentimentos de culpa, reflicta então sobre os pecados que não cometeu e que gostaria de ter cometido. Isto poderá eventualmente curá-lo dos seus sentimentos de culpa relativamente à sua mulher.
Carl Jung, in 'Cartas'

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Feliz como uma Criança...

Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente - isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer... Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância tansforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu - o ceú dos seus primeiros anos.
Mário de Sá-Carneiro, in 'O Incesto'

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Caridade como Dever...

Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a acção sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda: - Se a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pouca simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse por temperamento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas qualidades dos outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo, - não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! - e exactamente aí é que começa o valor do carácter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.

Emmanuel Kant, in ' Fundamentação da Metafísica dos Costumes'

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

As Coisas Secretas da Alma...

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Irracional no Amor...

Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.
Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me de ver o ridículo de tal explicação - tal como o exemplo que há pouco dei; se bem que diferente, é certo -, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significação alguma. Num repente, com efeito, a contradição, que é a base do cómico, desaparece; porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal. Em relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é possível admitir o involuntário num ente racional e livre.

Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Boa Vontade...


De todas as coisas que podemos conceber neste mundo ou mesmo, de uma maneira geral, fora dele, não há nenhuma que possa ser considerada como boa sem restrição, salvo uma boa vontade. O entendimento, o espírito, o juízo e os outros talentos do espírito, seja qual for o nome que lhes dermos, a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidades do temperamento, são, indubitávelmente, sob muitos aspectos, coisas boas e desejáveis; contudo, também podem chegar a ser extrordináriamente más e daninhas se a vontade que há-de usar destes bens naturais, e cuja constituição se chama por isso carácter, não é uma boa vontade. O mesmo se pode dizer dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a consideração, a própria saúde e tudo o que constitui o bem-estar e contentamento com a própria sorte, numa palavra, tudo o que se denomina felicidade, geram uma confiança que muitas vezes se torna arrogância, se não existir uma boa vontade que modere a influência que a felicidade pode exercer sobre a sensibilidade e que corrija o princípio da nossa actividade, tornando-o útil ao bem geral; acrescentemos que num espectador imparcial e dotado de razão, testemunha da felicidade ininterrupta de uma pessoa que não ostente o menor traço de uma vontade pura e boa, nunca encontrará nesse espectáculo uma satisfação verdadeira, de tal modo a boa vontade parece ser a condição indispensável sem a qual não somos dignos de ser felizes. (...) A boa vontade não é boa pelo que produz e realiza, nem por facilitar o alcance de um fim que nos proponhamos, mas apenas pelo querer mesmo; isto quer dizer que ela é boa em si e que, considerada em si mesma, deve ser tida em preço infinitamente mais elevado que tudo quanto possa realizar-se por seu intermédio em proveito de alguma inclinação, ou mesmo, se se quiser, do conjunto de todas as inclinações.

Emmanuel Kant, in 'Fundamentação da Metafísica dos Costumes'

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Verdadeira Bondade do Homem...

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
Milan Kundera, in "A Insustentável Leveza do Ser"

sábado, 13 de fevereiro de 2010

As Perguntas Verdadeiramente Importantes...

As perguntas verdadeiramente importantes são as que uma criança pode formular - e apenas essas. Só as perguntas mais ingénuas são realmente perguntas importantes. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode passar. Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há resposta que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência.
Milan Kundera, in "A Insustentável Leveza do Ser"

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Crime da Palavra...

Nenhum código, nenhuma instituição humana pode prevenir o crime moral que mata com uma palavra. Nisso consta a falha das justiças sociais; aí está a diferença que há entre os costumes da sociedade e os do povo; um é franco, outro é hipócrita; a um, a faca, à outra, o veneno da linguagem ou das ideias; a um a morte, à outra a impunidade.

Honoré de Balzac, in "O Contrato de Casamento"

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Alma e Corpo - A Ilusão da Integridade...

Em qualquer momento em que a consideremos, a nossa alma total tem sempre um valor quase fictício, apesar do numeroso balanço das suas riquezas, pois ora umas, ora outras, são indisponíveis, quer se trate de riquezas efectivas como de riquezas da imaginação... Pois as perturbações da memória estão ligadas às intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa possessão.
Marcel Proust, in "Sodoma e Gomorra"

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Coragem Aparente...

O soldado está convencido de que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que o matem; o ladrão, antes que o prendam; o homem, em geral, antes que o arrebate a morte. Esse é o amuleto que preserva os indivíduos - e às vezes os povos - não do perigo, mas do medo ao perigo; na verdade, da crença no perigo, motivo pelo qual o desafiam em certos casos, sem que sejam necessariamente bravos.
Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ser Feliz é um Dever...

É difícil ser feliz; requer espírito, energia, atenção, renúncia e uma espécie de cortesia que é bem próxima do amor. Às vezes é uma graça ser feliz. Mas pode ser, sem a graça, um dever. Um homem digno desse nome agarra-se à felicidade, como se amarra ao mastro em mau tempo, para se conservar a si mesmo e aos que ama. Ser feliz é um dever. É uma generosidade.
Louis Pauwels, in "Carta Aberta às Pessoas Felizes"

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Instantâneos Diferentes do Ser...

Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede a deslocação que eles operavam em relação a nós.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Mentimos para Proteger o nosso Prazer...

A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, e sobretudo, e talvez apenas, àqueles que nos amam. Só estes, com efeito, nos fazem temer pelo nosso prazer e desejar a sua estima.
Marcel Proust, in 'A Fugitiva'

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Imaginação ou Sensibilidade?

Não é certo que para a criação de uma obra literária a imaginação e a sensibilidade sejam qualidades equivalentes, e que a segunda possa sem grande inconveniente substituir a primeira, do mesmo modo que há pessoas cujo estômago é incapaz de digerir e que encarregam os intestinos dessa função. Um homem que nasceu sensível e que não tenha imaginação poderá apesar disso escrever romances admiráveis. O sofrimento que os outros lhe causarão, os esforços para o evitar, os conflitos que esse sofrimento e a outra pessoa cruel irão criar, tudo isso, interpretado pela inteligência, poderá constituir matéria para um livro não apenas tão belo como se tivesse sido imaginado, inventado, mas também tão exterior aos sonhos, do autor, se este, feliz, se tivesse deixado arrastar por si mesmo, tão surpreendente para ele próprio, tão acidental como um capricho fortuito da imaginação.
Marcel Proust, in 'O Tempo Reencontrado'

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A Mentira Perfeita...

A mentira, a mentira perfeita, acerca das pessoas que conhecemos, sobre as relações que com elas tivemos, sobre o nosso móbil em determinada acção formulado por nós de uma forma completamente diferente, a mentira acerca do que somos, acerca do que amamos, acerca do que sentimos pela criatura que nos ama e que julga ter-nos tornado semelhante a ela porque passa o dia a beijar-nos, essa mentira é das únicas coisas no mundo que nos pode abrir perspectivas sobre algo de novo, de desconhecido, que pode abrir em nós sentidos adormecidos para a contemplação do universo que nunca teríamos conhecido.
Marcel Proust, in 'A Prisioneira'

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Memória Personalizada...

Não acontece apenas que certas pessoas têm memória e outras não (...), mas, mesmo com memórias iguais, duas pessoas não se lembram das mesmas coisas. Uma terá prestado pouca atenção a um facto do qual a outra guardará um grande remorso, e em contrapartida terá apanhado no ar como sinal simpático e característico uma palavra que a outra terá deixado escapar quase sem pensar. O interesse de não nos termos enganado quando emitimos um prognóstico falso abrevia a duração da lembrança desse prognóstico e permite-nos afirmar em breve que não o emitimos. Enfim, um interesse mais profundo, mais desinteressado, diversifica as memórias das pessoas, de tal modo que o poeta que esqueceu quase tudo dos factos que outros lhe recordam retém deles uma impressão fugidia. De tudo isso, resulta que, passados vinte anos de ausência, encontramos, em lugar de esperados rancores, perdões involuntários, inconscientes, e, em contrapartida, tantos ódios cuja razão não conseguimos explicar (porque esquecemos também a má impressão que causámos). Até da história das pessoas que conhecemos melhor esquecemos as datas.
Marcel Proust, in 'O Tempo Reencontrado'

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Nosso Código Ético e Moral Desculpabiliza-nos Perante a Recusa de Aliviarmos o Sofrimento Alheio...

Eu não desviava os olhos de minha mãe, sabia que, quando estivessem à mesa, não me seria permitido ficar até ao fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, a mamã não me deixaria beijá-la várias vezes diante dos outros, como se fosse no meu quarto. (...) antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: «O pequeno parece cansado; deveria ir deitar-se. E depois, jantamos tarde hoje.» E meu pai,(...) disse: «Sim. Anda, vai deitar-te.» Eu quis beijar a mamã; nesse instante ouviu-se a sineta do jantar. «Não, não, deixa a tua mãe em paz, vocês já se despediram bastante, essas demonstrações são ridículas. Anda, sobe!» E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau «contra o coração», subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe havia dado, com um beijo, licença de me acompanhar. (...) Já no meu quarto, tive de (...) cerrar os postigos, cavar o meu próprio túmulo enquanto virava as cobertas, vestir o sudário da minha camisa de dormir. Mas antes de sepultar-me no leito de ferro (...), veio-me um impulso de revolta e resolvi tentar um ardil de condenado. Escrevi a minha mãe, suplicando-lhe que subisse, para um assunto grave que eu não podia dizer-lhe na minha carta. Todo o meu receio era que Francisca, a cozinheira (...), se recusasse a levar o meu bilhete. Suspeitava que, para ela, dar um recado a minha mãe quando havia gente de fora pareceria uma coisa tão impossível como, para o porteiro de um teatro, entregar uma carta a um actor que estivesse em cena. Possuía ela, para julgar os recados que devia ou não devia fazer, um código imperioso, abundante, subtil e intransigente, com distinções imperceptíveis ou ociosas (o que lhe dava a aparência dessas leis antigas que, a par de prescrições ferozes como a chacina de crianças de peito, proíbem, com exagerada delicadeza, que se cozinhe o cabrito no leite de sua própria mãe (...) ).
Esse código, a julgar pela repentina obstinação com que ela se negava a desempenhar certas incumbências que lhe dávamos, parecia ter previsto complexidades sociais e refinamentos mundanos de tal natureza que nada, no ambiente de Francisca e na sua vida de criada de aldeia, lhe poderia ter sugerido; e éramos obrigados a acreditar que havia nela um passado francês muito antigo, nobre e mal compreendido, como nessas cidades manufactureiras onde velhos palácios testemunham que houve outrora uma vida de corte, o onde os operários de uma fábrica de produtos químicos trabalham no meio de delicadas esculturas que representam o milagre de S. Teófilo ou os quatro filhos de Aymon. Naquele meu caso particular, o artigo de código conforme o qual era muito pouco provável que Francisca, salvo em caso de incêndio, fosse perturbar a mamã na presença do Sr. Swann, por causa de um personagem tão insignificante quanto eu, exprimia simplesmente a reverência que ela dedicava não somente aos pais(...), mas também ao estranho a quem se dá hospitalidade, reverência que talvez me impressionasse num livro, mas que sempre me irritava em sua boca, em face do tom grave e enternecido que ela tomava para aludir a isso, e muito mais naquela noite em que o carácter sagrado que atribuía à ceia concorreria para que se negasse a perturbar a cerimónia. Mas, para conseguir uma probabilidade em meu favor, não hesitei em mentir, dizendo que não era a mim que havia ocorrido escrever à mamã mas que fora a mamã que me recomendara, ao separarmo-nos, que não me esquecesse de lhe mandar uma resposta relativa a certo objecto que me pedira para procurar; e que ela decerto ficaria muito incomodada se não lhe entregassem o meu bilhete. Penso que Francisca não me acreditou, (...) contemplou durante cinco minutos o sobrescrito, como se o exame do papel e o aspecto da letra fossem informá-la da natureza do conteúdo (...) Depois saiu com um ar resignado que parecia significar: «Que desgraça para os pais terem um filho assim!»
Marcel Proust, in "No Caminho de Swann"

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Falar de si Próprio...

Como o perigo de desagradar provém principalmente da dificuldade em avaliar quais as coisas que se notam e quais as que não são notadas, pelo menos por prudência nunca deveria a gente falar de si mesmo, pois esse é um tema em que seguramente a nossa visão e a alheia não coincidem nunca. (...) Ao mau costume de falar de si mesmo e dos próprios defeitos, cumpre acrescentar, como formando bloco com o mesmo, esse outro hábito de denunciar nos carácteres alheios defeitos análogos aos nossos. E constantemente estamos a falar nos referidos defeitos, como se fora uma espécie de rodeio para falar de nós mesmos, em que se juntam o prazer de confessar e o de absolvermo-nos.
Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'