segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Preço da Imagem...

Não nos contentamos com a vida que temos em nós. Queremos viver na ideia dos outros, de uma vida imaginária. Esforçamo-nos por parecer tais quais somos. Fazemos por conservar aquele ser imaginário, que não é outro senão o verdadeiro. Se tivermos generosidade, fidelidade, apressamo-nos a não o dar a conhecer, para ligarmos as suas virtudes a esse ser. Somos valentes para adquirir a reputação de que não somos poltrões. É um sinal da capacidade do nosso ser o de não estar satisfeito com uma coisa sem a outra, o de não renunciar nem a uma nem a outra. O homem que não vivesse para conservar a sua virtude seria infame.
Isidore de Lautréamont, in 'Poesias'

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O Conceito e a Imagem...

Entre a imagem e o conceito, nenhuma síntese. Tampouco essa filiação, sempre dita, jamais vivida, pela qual os psicólogos fazem o conceito emergir da pluralidade das imagens. Quem se entrega com todo o seu espírito aos conceitos, com toda a sua alma às imagens, sabe bem que os conceitos e as imagens se desenvolvem em linhas divergentes da vida espiritual.
Gaston Bachelard, in 'A Terra e os Devaneios do Repouso'

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Aparências e Realidades...

Todo o fenómeno tem, relativamente ao nosso entendimento e à sua potência de descriminar, uma realidade - quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recomenda Buffon) certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição própria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu exacto, real e único modo de ser. Somente o erro, a ignorância, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a ilusão, formam em torno de cada fenómeno uma névoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a visão intelectual o divida no seu exacto, real, e único modo de ser. É justamente o que sucede aos monumentos de Londres mergulhados no nevoeiro... (...) Nas manhãs de nevoeiro numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta é a estátua de um herói ou o fragmento de um tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade - e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos uma névoa igual flutua sobre as realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o templo e a taverna. Raras são as visões intelectuais bastante agudas e poderosas para romper através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da realidade.
Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Como a Aparência se Torna Ser...

O actor acaba por não deixar de pensar na impressão causada pela sua pessoa e no efeito cénico total, até por ocasião da mais profunda mágoa, por exemplo, mesmo no enterro do seu filho; chorará ante o seu próprio desgosto e respectivas exteriorizações como sendo o seu próprio espectador. O hipócrita, que desempenha sempre um mesmo papel, acaba por deixar de ser hipócrita; por exemplo, sacerdotes, que, enquanto homens novos, são habitualmente, de modo consciente ou inconsciente, hipócritas, por fim tornam-se naturais e são, então, realmente, sem qualquer simulação, mesmo sacerdotes; ou se o pai não consegue lá chegar, então, talvez, o filho, que se serve do avanço do pai e herda a sua habituação. Se uma pessoa quiser, durante muito tempo e persistentemente, parecer alguma coisa, consegue-o pois acaba por se lhe tornar difícil ser qualquer outra coisa. A profissão de quase toda a gente, até do artista, começa com hipocrisia, com uma imitação a partir do exterior, com um copiar de aquilo que é eficaz. Aquele, que traz sempre a máscara das expressões fisionómicas amistosas, tem de acabar por adquirir poder sobre as disposições anímicas benévolas, sem as quais não é possível forçar a expressão da afabilidade - e, finalmente, por seu turno adquirem estas poder sobre ele: ele é amistoso.


Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Vaidade Deforma a Alegria e a Tristeza...

As virtudes humanas muitas vezes se compõem de melancolia, e de um retiro agreste. As mais das vezes é humor o que julgamos razão; é temperamento o que chamamos desengano; e é enfermidade o que nos parece virtude. Tudo são efeitos da tristeza; esta obriga-nos a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz reflectir sobre o passado, quási sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor, e cobardia, na incerteza de acontecimentos felizes, ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por força os movimentos dela; e do mesmo modo os da tristeza.
Um ânimo alegre disfarça mal o riso, um coração triste encobre mal o seu desgosto: como há-de chorar quem está contente? E como há-de rir quem está triste? Se alguma vez se chora donde só se deve rir, ou se ri por aquilo por que se deve chorar, a alma então penetrada de dor, ou de prazer, desmente aquele exterior fingido, e falso. Só a vaidade sabe transformar o gosto em dor, e esta em prazer, a alegria em tristeza, e esta em contentamento; por isso as feridas não se sentem, antes lisonjeiam, quando foram alcançadas no ardor de uma peleja, esclarecida pelas circunstâncias da vitória; as cicatrizes por mais que causem deformidade enorme, não entristecem, antes alegram, porque servem de prova, e instrumento visível, por onde a cada instante, e sem palavras, o valor se justifica; são como uma prova muda, que todos entendem, e que todos vêem com admiração, e com respeito.
Matias Aires, in 'Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens e Carta Sobre a Fortuna'

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Palavra não é o Signo do Pensamento...

A palavra não é o «signo» do pensamento, se compreendermos como tal um fenómeno que anuncia outro, como o fumo anuncia o fogo. A palavra e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se uma e outro fossem dados tematicamente; na realidade estão envolvidos uma no outro, o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido. Maurice
Merleau-Ponty, in 'Fenomenologia da Percepção'

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Perfeito Controle da Alegria e da Dor...

Alegria desmedida e dor muito violenta acometem sempre e apenas a mesma pessoa: pois ambas se condicionam reciprocamente e são também condicionadas juntas por uma grande vivacidade do espírito. Ambas são causadas, não pelo simples presente, mas pela antecipação do futuro. No entanto, visto que a dor é essencial à vida e, pelo seu grau, é também determinada pela natureza do sujeito - o que implica que, na realidade, modificações repentinas, sendo sempre externas, não podem mudar o seu grau -, na base do júbilo ou da dor excessivos há sempre um erro e uma falsa crença: por conseguinte, essas duas exaltações do espírito poderiam ser evitadas com o uso do juízo.
Todo o júbilo desmedido repousa sempre na ilusão de ter encontrado na vida algo que não se pode encontrar realmente, isto é, uma satisfação durável dos desejos ou preocupações tormentosos e sempre renascentes. Mais tarde, é inevitável que nos separemos de cada ilusão dessa espécie, pagando-a então, quando desaparece, com igual dor amarga, independentemente da alegria que o seu surgimento nos tenha proporcionado. Nesse sentido, ela assemelha-se por completo a uma altura da qual o único momento de descer novamente é a queda, de maneira que deveria ser evitada: e toda a dor repentina ou excessiva é justamente apenas a queda de tal altura, o esmorecimento de tal ilusão e, portanto, deve ser condicionada. Poder-se-ia, por conseguinte, evitar ambas, se se fosse capaz de abraçar as coisas de modo perfeitamente claro sempre na sua totalidade e na sua concatenação, e de impedir firmemente a si mesmo de lhes conceder de facto a cor que se desejaria que tivessem. A ética estóica visava essencialmente libertar o espírito de toda a ilusão semelhante e das suas consequências, e a dar-lhe, em vez disso, um equilíbrio inabalável.
Arthur Schopenhauer, in 'A Arte de Ser Feliz'

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Eterno é a Própria Vida...

Segundo a expressão de Lavelle, a morte dá «a todos os acontecimentos que a precederam esta marca do absoluto que nunca possuiriam se não viessem a interromper-se». O absoluto habita em cada uma das nossas empresas, na medida em que cada uma se realiza de uma vez para sempre e não será nunca recomeçada. Entra na nossa vida através da sua própria temporalidade. Assim o eterno torna-se fluido e reflui do fim ao coração da vida. A morte já não é a verdade da vida, a vida já não é a espera do momento em que a nossa essência será alterada. O que há sempre de incoactivo, de incompleto e de constrangedor no presente não é já um sinal de menor realidade.
Mas então a verdade de um ser já não é aquilo em que se tornou no fim ou a sua essência, mas o seu devir activo ou a sua existência. E se, como Lavelle dizia em tempos, nos julgamos mais perto dos mortos que amámos do que dos vivos, é porque já nos não põem em dúvida e daqui para o futuro podemos sonhá-los a nosso gosto. Esta piedade é quase ímpia. A única recordação que lhes diz respeito é a que se refere ao uso que faziam de si próprios e do seu mundo, o acento da sua liberdade na incompletude da vida. O mesmo frágil princípio faz-nos viver e dá ao que fazemos um sentido inesgotável.

Maurice Merleau-Ponty, in 'O Elogio da Filosofia'

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Não há Casamento com Luxúria...

No casamento a revitalização da luxúria só pode ser conseguida enfraquecendo e destruindo os seus laços. Quero dizer, amantes. É por isso que a luxúria se torna um pecado, pois está destinada a morrer, e se ainda se acende isso só acontece por causa das mulheres fora do casamento. É assim que chegamos à ideia original de pecado quando a luxúria é a inimiga do amor. A cópula entre marido e mulher não é pecaminosa porque é feita sem luxúria. Todos os casos extraconjugais são luxuriosos e por isso pecaminosos. Assim, todas as tentativas de reavivar a luxúria no casamento são más, incluindo o afastamento.
Porque reacender a luxúria por um curto período ameaça um casamento, sujeitando a esposa à tentação de adultério na separação. O casamento foi criado para destruir a paixão embora a princípio atraia com paixão. Calcar a paixão com a paixão. O casamento seduz com a legitimidade e com a disponibilidade da luxúria. Ao fazermos o juramento de fidelidade, não suspeitamos que estamos também a renunciar à luxúria. O casamento foi criado para distrair as pessoas da luxúria com a ajuda da luxúria. Por isso, para bem de um casamento forte, tem se aguentar o seu desaparecimento. Não sustenham a respiração! A luxúria é o orgulho do corpo; o amor é o orgulho da alma, um orgulho que não é mais que a luxúria da alma.
Alexander Puschkine, in 'Diário Secreto'

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A Piedade...

A piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a actividade do amor de si próprio, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo o selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, faz a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faz o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos subtis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo o homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.
Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Ciclo do Progresso...

Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens, o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas.
À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome, abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.

Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Cuida de Ser Tal e Qual Desejas Parecer...

Ao ler e ouvir, fá-lo com atenção; não disperses o entendimento, mas força-o a estar atento ao que faz e ao que tem diante de si, e não alhures. Se sai do caminho, chama-o de volta sem ruído, e guarda para outra ocasião os pensamentos alheios ao estudo. Sabe que perdes tempo e trabalho se não estás atento ao que lês ou ao que ouves. Não tenhas vergonha de perguntar o que não sabes, nem de aprender com outrem. Disso nunca se envergonham os homens insignes; antes, sim, de não saberem ou de não quererem aprender. Não te vanglories de saber o que não sabes, mas pergunta-o àqueles que acreditas o saibam. Se queres parecer sábio, trabalha por sê-lo, que para isso não há caminho suave. Semelhantemente, a maneira mais fácil de se parecer bom é sendo-o realmente. Enfim, em todas as coisas, cuida de ser tal e qual desejas parecer, porquanto, de outro modo, assaz vão será o teu desejo. O tempo põe a descoberto o que é falso e fingido, e dá força à verdade; como se costuma dizer, não há mentira que não se descubra.
Juan Luis Vives, in "Introdução à Sabedoria"

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Importância da Autoridade...

É inútil alongar-me demoradamente sobre a importância da autoridade. São muito poucas as pessoas civilizadas capazes de uma existência perfeitamente autónoma ou tão-só de juízo independente. Não nos é possível representar em toda a sua amplitude a necessidade de autoridade e a fraqueza interior dos seres humanos.
Sigmund Freud, in 'As Palavras de Freud'