terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Feliz Dia para Quem É...



Feliz dia para quem é

O igual do dia,

E no exterior azul que vê

Simples confia!


Azul do céu faz pena a quem

Não pode ser

Na alma um azul do céu também

Com que viver


Ah, e se o verde com que estão

Os montes quedos

Pudesse haver no coração

E em seus segredos!


Mas vejo quem devia estar

Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

Ah, a ironia


De só sentir a terra e o céu

Tão belo ser

Quem de si sente que perdeu

A alma p’ra os ter!


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sábado, 7 de janeiro de 2012

Só Chegamos a Ser uma Parte Mínima do que Poderíamos Ser...



A actividade de comprar conclui em decidir-se por um objecto; mas é também antes uma eleição, e a eleição começa por perceber as possibilidades que oferece o mercado. De onde resulta que a vida, no seu modo «comprar», consiste primeiramente em viver as possibilidades de compra como tais. Quando se fala de nossa vida sói esquecer-se disto, que me parece essencialíssimo: a nossa vida é em todo o instante e antes que nada consciência do que nos é possível. Se em cada momento não tivéssemos à nossa frente mais que uma só possibilidade, careceria de sentido chamá-la assim. Seria apenas pura necessidade. Mas ai está: esse estranhíssimo facto da nossa vida possui a condição radical de que sempre encontra ante si várias saídas, que por serem várias adquirem o carácter de possibilidades entre as quais havemos de decidir. Tanto vale dizer que vivemos como dizer que nos encontramos num ambiente de determinadas possibilidades. A este âmbito costuma chamar-se «as circunstâncias». Toda a vida é achar-se dentro da «circunstância» ou mundo. Porque este é o sentido originário da idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida, mas que é a sua autêntica periferia. Representa o que podemos ser; portanto, a nossa potencialidade vital. Esta tem de se concretizar para se realizar, ou, dito de outra maneira, chegamos a ser só uma parte mínima do que poderíamos ser. Daí que nos parece o mundo uma coisa tão enorme, e nós, dentro dele, uma coisa tão pequena. O mundo ou a nossa vida possível é sempre mais que o nosso destino ou vida efectiva.


Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Corremos Dentro dos Corpos...



Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo. Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto, in 'Antídoto'

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Egoísmo Relativo...

Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade. Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas. Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.

Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose'

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Homem - Um Ser Egoísta...

O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência. Desse modo, todas as acções dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada acção. Nas suas acções baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: "Tudo para mim e nada para os outros" é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.


Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Saber Estar...

És impaciente e difícil de contentar. Se estás só, queixas-te da solidão; se na companhia dos outros, tu os chamas de conspiradores e de ladrões, e achas defeitos nos teus próprios pais, filhos, irmãos e vizinhos. No entanto, quando estás sozinho, deves falar em tranquilidade e liberdade e te considerares igual aos deuses. E quando estás em companhia numerosa, não a deves chamar de turba aborrecida ou ruidosa, mas de assembleia e tribunal, dessarte aceitando tudo com contentamento.


Epicteto, in 'O Festival Da Vida'