quinta-feira, 17 de março de 2011

A Felicidade não Tem Medida...

Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é "mais" feliz, tornarás possível que se diga também "muito mais"; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por "sumo bem" eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida. Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo, desejar ainda mais do que o que tem?
Vou dizer-te qual a origem donde provém este erro: da ignorância de que o que caracteriza a vida feliz é a sua unidade. É a qualidade, não a dimensão, que grangeia à vida esse supremo estado. Por isso mesmo, a vida feliz é simultaneamente longa e breve, difusa e limitada, disseminada por muitos lugares, por muitas áreas, e concentrada num único ponto. Quem avalia a felicidade em números, medidas e partes está-lhe por isso mesmo roubando o que ela tem de melhor. E o que há de melhor na felicidade do que a sua plenitude? Imagino eu que toda a gente pára de comer e de beber quando está saciada. Este come mais, aquele come menos; mas que importa isso se ambos se sentem satisfetios? Este bebe mais, aquele bebe menos; mas que importa isso se ambos mataram a sede? Este viveu mais anos, aquele viveu menos; isso não tem importância desde que a provecta idade do primeiro e os breves anos do outro os tenham feito igualmente felizes. Aquele a quem tu chamas "menos feliz" não é de facto feliz, porquanto este predicado não é susceptível de conhecer gradação.
Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

terça-feira, 15 de março de 2011

Amizade Correcta...

O sábio, ainda que se baste a si mesmo, deseja ter um amigo, quanto mais não fosse para exercer a amizade, para não deixar definhar tão grande virtude. Ele não busca, como dizia Epicuro, «alguém que lhe vele à cabeceira em caso de doença, que o socorra quando esteja em grilhões ou na indigência». Busca alguém a cuja cabeceira de doente possa velar; alguém que, quando implicado numa contenda, ele possa salvar dos cárceres inimigos. Pensar em si próprio, e empenhar-se numa amizade com esse pensamento preconcebido, é cometer um erro de cálculo. A empresa terminará como começou. Fulano arranjou um amigo para dispor, um dia, de um libertador que o preserve dos grilhões. Ao primeiro tinido de cadeias, lá se vai o amigo.
Tais são as amizades que o mundo chama de «ligações temporárias». O homem a quem se escolhe para prestar serviços deixará de agradar no dia em que não sirva para mais nada. Daí a constelação de amigos ao redor das grandes fortunas. Vinda a ruína, faz-se, à volta, a solidão: os amigos esquivam-se dos lugares onde são postos à prova. Daí, todos esses escândalos: amigos abandonados, amigos traídos, sempre por medo! É inevitável que o fim concorde com o começo: o interesse fez de sicrano teu amigo; o interesse fará com que ele deixe de sê-lo. Ele se mostrará sensível às vantagens que lhe sejam oferecidas para que dessirva a amizade, se, nesta, mostrava-se sensível a qualquer vantagem fora dela mesma. Qual, então, o meu objectivo ao fazer um amigo? O de ter alguém por quem possa morrer, a quem possa seguir no meu exílio, a quem possa proteger com a minha pessoa, a cuja salvação possa devotar os meus dias.

Séneca, in 'O Sábio e a Amizade'

segunda-feira, 14 de março de 2011

Os Homens são como as Crianças...

A atitude que nós temos para com as crianças é a atitude que o sábio tem para com todos os homens, que são pueris mesmo após a idade madura e os cabelos brancos. O que terão progredido estes homens, cujos males da sua alma apenas se tornaram em maiores males, que em forma e grandeza corporais tanto diferem das crianças, mas que em tudo o resto não são menos ligeiros e inconstantes, correndo atrás dos desejos sem reflectirem, agitados e que quando se aquietam é por medo, não por engenho seu? Diria que aquilo que distingue as crianças dos homens é que a avidez das crianças é por dados, nozes e pequenas moedas de ouro, enquanto que a dos homens é pelo ouro e pela prata das cidades; uns imaginam magistrados entre eles mesmos e imitam a toga, o facho e o tribunal, os outros jogam os mesmos jogos, mas a sério, no Campo de Marte, no Fórum e na Cúria; uns, amontoando areia à beira-mar, constroem simulacros de casas, os outros, como quem executa uma grande obra, trabalhando a pedra na construção de paredes e tectos, fazem aquilo que os devia abrigar um verdadeiro perigo. Por isso, entre crianças e homens-feitos o erro é igual, diferindo apenas o objecto e a importância. Assim sendo, não é por acaso que o sábio recebe as ofensas dos homens como brincadeiras e, de vez em quando, os admoesta e castiga, não porque tenha sofrido a injúria, mas sim porque a cometeram e para que não a repitam. É também com a vergasta que domamos os animais, e não nos iramos com eles quando eles recusam ser montados, mas reprimimo-los, para que a dor vença a sua teimosia. Vês assim resolvida aquela objecção que nos fazem: se o sábio não sofre a injúria nem a ofensa, porque pune os que as cometeram? De facto, ele não se vinga, ele emenda-os.
Séneca, in 'Da Constância do Sábio'

sábado, 12 de março de 2011

Somos Todos Corruptíveis...

A faculdade de se deixar corromper no sentido mais amplo do termo é uma particularidade da espécie humana em geral; mais ainda, as relações entre os homens só são possíveis porque somos todos corruptíveis em maior ou menor grau. Cada vez que dependemos do amor, da benevolência, da simpatia ou simplesmente da delicadeza, estamos já no fundo corrompidos, e o nosso juízo nunca é, por isso, verdadeiramente objectivo; e ele é-o tanto menos quanto nos esforçamos por permanecer incorruptíveis.
A corruptibilidade está longe de se limitar à estrita relação de pessoa a pessoa; uma obra, uma acção, um gesto pode lisonjear-nos confirmando o nosso amor próprio, as nossas opiniões ou a nossa impressão sobre o mundo. É apenas quando utilizamos conscientemente a corruptibilidade dos outros para nossa vantagem pessoal ou em detrimento de um terceiro, que ela é um mal, mas a falta é então mais nossa do que daquele cuja corruptibilidade nos beneficia.
Arthur Schnitzler, in 'Relações e Solidão'

sexta-feira, 11 de março de 2011

A Verdadeira Coragem Humana...

Se estás disposto a nunca usar da violência, e sempre resistindo, torna-te forte de corpo e de alma; é a mais difícil de todas as atitudes; exige a constante vigilância de todos os movimentos do espírito, o domínio completo de todos os impulsos dos nervos e dos músculos rebeldes; a agressão é fácil contra o medo e também a primeira solução; para que, em todos os instantes, a possas pôr de lado e substituí-la pela tranquila recusa, não te deves fiar nos improvisos; a armadura de que te revestes nos momentos de crise é forjada dia a dia e antes deles; faz-se de meditação e de ginástica, de pensamento definido e preciso e de perfeitos comandos; quando menos se prevê surge o instante da decisão; rápida e firme, sem emoções ou sufocando-as, tem que trabalhar a máquina formada.
Que trabalhar, sobretudo, humanamente; a visão do autómato é a pior de todas para os amigos do espírito; não serão teus elementos nem a secura, nem a estóica dureza, nem o ar superior, nem as cortantes palavras; requere-se no inabalável a humanidade, o sorriso afectuoso, a íntima bondade, a desportiva calma, amiga do adversário, de quem joga um bom jogo; sozinho guardarás as lutas interiores que tens de suportar, a batalha contínua para impores o silêncio aos instintos de ataque e da vingança; será tua boa auxiliar a pele dura e uma carne que, domada, suporte, sem revolta, as provações e os trabalhos; o óleo do ginásio ajuda Marco Aurélio; quem se adivinha senhor de si melhor resistirá sem violência a tudo o que inventou a real fraqueza do contrário; e só tem que se guardar dos perigos da altivez e do desprezo.
Agostinho da Silva, in 'Considerações e Outros Textos'

segunda-feira, 7 de março de 2011

Porque é que os Homens não Compreendem as Mulheres...

Tu estás convencida há vários anos de que eu não te compreendo. Esta é sempre a teoria das mulheres, que não são compreendidas, que não são queridas, que não são adoradas, as queixas montanhas grandes, queixas enormes, sempre a justificar uma infelicidade que lhes vem lá do fundo da criação do mundo, do útero, da terra, as mulheres reflectem o útero feminino da terra, um útero cheio de aflições, em conclusão, queixam-se de tudo então entre os quarenta e os cinquenta, esse útero funciona nas alturas, é um útero cósmico que já não é parte de uma mulher, pertence à mulher do mundo. Há muita verdade no que dizes, o homem desinteressa-se facilmente, depois do acto do amor, depois logo sacode as penas, arrebita, passa à frente, domina outro mundo, a mulher fica fechada, acanhada nesse encontro muito íntimo, nesse seu mais fundo dos fundos, na identidade uterina com a ideia da criação, da reprodução da génese, salta, salta, forma-se na mulher a visão do caos a que só ela pelo amor pode dar uma nova regra, pelo domínio da paixão, pela companhia, para isso tem de ser compreendida, ela julga que é compreendida, tem de justificar a sua infelicidade pela compreensão do amor, de um outro amor, a mulher busca no outro amor o amor definitivo, amor que nunca aparece, é o poder fantásmico de convicção, que rompe todas as barreiras, a mulher atira-se, não sabe onde nem como, é capaz dos maiores actos de heroísmo clandestino, aparece, vai, surge, abre-se, mostra o que é o amor, a sua entrega total.
Ruben A., in 'Silêncio para 4'

terça-feira, 1 de março de 2011

As Aparências Dizem Aquilo Que Quisermos...

Cada boa qualidade humana está relacionada com uma má, na qual ameaça transformar-se; e cada má qualidade está, de uma forma semelhante, relacionada com uma boa. O motivo por que tantas vezes não compreendemos as pessoas é que, quando as conhecemos, confundimos as suas más qualidades com as boas com elas relacionadas, ou vice-versa: assim, um homem prudente pode parecer-nos cobarde, um homem poupado, avarento; ou um perdulário, liberal, uma pessoa grosseira franca e directa, um sujeito imprudente cheio de nobre autoconfiança, e assim por diante.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos'

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Preço da Imagem...

Não nos contentamos com a vida que temos em nós. Queremos viver na ideia dos outros, de uma vida imaginária. Esforçamo-nos por parecer tais quais somos. Fazemos por conservar aquele ser imaginário, que não é outro senão o verdadeiro. Se tivermos generosidade, fidelidade, apressamo-nos a não o dar a conhecer, para ligarmos as suas virtudes a esse ser. Somos valentes para adquirir a reputação de que não somos poltrões. É um sinal da capacidade do nosso ser o de não estar satisfeito com uma coisa sem a outra, o de não renunciar nem a uma nem a outra. O homem que não vivesse para conservar a sua virtude seria infame.
Isidore de Lautréamont, in 'Poesias'

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O Conceito e a Imagem...

Entre a imagem e o conceito, nenhuma síntese. Tampouco essa filiação, sempre dita, jamais vivida, pela qual os psicólogos fazem o conceito emergir da pluralidade das imagens. Quem se entrega com todo o seu espírito aos conceitos, com toda a sua alma às imagens, sabe bem que os conceitos e as imagens se desenvolvem em linhas divergentes da vida espiritual.
Gaston Bachelard, in 'A Terra e os Devaneios do Repouso'

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Aparências e Realidades...

Todo o fenómeno tem, relativamente ao nosso entendimento e à sua potência de descriminar, uma realidade - quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recomenda Buffon) certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição própria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu exacto, real e único modo de ser. Somente o erro, a ignorância, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a ilusão, formam em torno de cada fenómeno uma névoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a visão intelectual o divida no seu exacto, real, e único modo de ser. É justamente o que sucede aos monumentos de Londres mergulhados no nevoeiro... (...) Nas manhãs de nevoeiro numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta é a estátua de um herói ou o fragmento de um tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade - e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos uma névoa igual flutua sobre as realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o templo e a taverna. Raras são as visões intelectuais bastante agudas e poderosas para romper através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da realidade.
Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Como a Aparência se Torna Ser...

O actor acaba por não deixar de pensar na impressão causada pela sua pessoa e no efeito cénico total, até por ocasião da mais profunda mágoa, por exemplo, mesmo no enterro do seu filho; chorará ante o seu próprio desgosto e respectivas exteriorizações como sendo o seu próprio espectador. O hipócrita, que desempenha sempre um mesmo papel, acaba por deixar de ser hipócrita; por exemplo, sacerdotes, que, enquanto homens novos, são habitualmente, de modo consciente ou inconsciente, hipócritas, por fim tornam-se naturais e são, então, realmente, sem qualquer simulação, mesmo sacerdotes; ou se o pai não consegue lá chegar, então, talvez, o filho, que se serve do avanço do pai e herda a sua habituação. Se uma pessoa quiser, durante muito tempo e persistentemente, parecer alguma coisa, consegue-o pois acaba por se lhe tornar difícil ser qualquer outra coisa. A profissão de quase toda a gente, até do artista, começa com hipocrisia, com uma imitação a partir do exterior, com um copiar de aquilo que é eficaz. Aquele, que traz sempre a máscara das expressões fisionómicas amistosas, tem de acabar por adquirir poder sobre as disposições anímicas benévolas, sem as quais não é possível forçar a expressão da afabilidade - e, finalmente, por seu turno adquirem estas poder sobre ele: ele é amistoso.


Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Vaidade Deforma a Alegria e a Tristeza...

As virtudes humanas muitas vezes se compõem de melancolia, e de um retiro agreste. As mais das vezes é humor o que julgamos razão; é temperamento o que chamamos desengano; e é enfermidade o que nos parece virtude. Tudo são efeitos da tristeza; esta obriga-nos a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz reflectir sobre o passado, quási sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor, e cobardia, na incerteza de acontecimentos felizes, ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por força os movimentos dela; e do mesmo modo os da tristeza.
Um ânimo alegre disfarça mal o riso, um coração triste encobre mal o seu desgosto: como há-de chorar quem está contente? E como há-de rir quem está triste? Se alguma vez se chora donde só se deve rir, ou se ri por aquilo por que se deve chorar, a alma então penetrada de dor, ou de prazer, desmente aquele exterior fingido, e falso. Só a vaidade sabe transformar o gosto em dor, e esta em prazer, a alegria em tristeza, e esta em contentamento; por isso as feridas não se sentem, antes lisonjeiam, quando foram alcançadas no ardor de uma peleja, esclarecida pelas circunstâncias da vitória; as cicatrizes por mais que causem deformidade enorme, não entristecem, antes alegram, porque servem de prova, e instrumento visível, por onde a cada instante, e sem palavras, o valor se justifica; são como uma prova muda, que todos entendem, e que todos vêem com admiração, e com respeito.
Matias Aires, in 'Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens e Carta Sobre a Fortuna'

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Palavra não é o Signo do Pensamento...

A palavra não é o «signo» do pensamento, se compreendermos como tal um fenómeno que anuncia outro, como o fumo anuncia o fogo. A palavra e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se uma e outro fossem dados tematicamente; na realidade estão envolvidos uma no outro, o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido. Maurice
Merleau-Ponty, in 'Fenomenologia da Percepção'

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Perfeito Controle da Alegria e da Dor...

Alegria desmedida e dor muito violenta acometem sempre e apenas a mesma pessoa: pois ambas se condicionam reciprocamente e são também condicionadas juntas por uma grande vivacidade do espírito. Ambas são causadas, não pelo simples presente, mas pela antecipação do futuro. No entanto, visto que a dor é essencial à vida e, pelo seu grau, é também determinada pela natureza do sujeito - o que implica que, na realidade, modificações repentinas, sendo sempre externas, não podem mudar o seu grau -, na base do júbilo ou da dor excessivos há sempre um erro e uma falsa crença: por conseguinte, essas duas exaltações do espírito poderiam ser evitadas com o uso do juízo.
Todo o júbilo desmedido repousa sempre na ilusão de ter encontrado na vida algo que não se pode encontrar realmente, isto é, uma satisfação durável dos desejos ou preocupações tormentosos e sempre renascentes. Mais tarde, é inevitável que nos separemos de cada ilusão dessa espécie, pagando-a então, quando desaparece, com igual dor amarga, independentemente da alegria que o seu surgimento nos tenha proporcionado. Nesse sentido, ela assemelha-se por completo a uma altura da qual o único momento de descer novamente é a queda, de maneira que deveria ser evitada: e toda a dor repentina ou excessiva é justamente apenas a queda de tal altura, o esmorecimento de tal ilusão e, portanto, deve ser condicionada. Poder-se-ia, por conseguinte, evitar ambas, se se fosse capaz de abraçar as coisas de modo perfeitamente claro sempre na sua totalidade e na sua concatenação, e de impedir firmemente a si mesmo de lhes conceder de facto a cor que se desejaria que tivessem. A ética estóica visava essencialmente libertar o espírito de toda a ilusão semelhante e das suas consequências, e a dar-lhe, em vez disso, um equilíbrio inabalável.
Arthur Schopenhauer, in 'A Arte de Ser Feliz'

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Eterno é a Própria Vida...

Segundo a expressão de Lavelle, a morte dá «a todos os acontecimentos que a precederam esta marca do absoluto que nunca possuiriam se não viessem a interromper-se». O absoluto habita em cada uma das nossas empresas, na medida em que cada uma se realiza de uma vez para sempre e não será nunca recomeçada. Entra na nossa vida através da sua própria temporalidade. Assim o eterno torna-se fluido e reflui do fim ao coração da vida. A morte já não é a verdade da vida, a vida já não é a espera do momento em que a nossa essência será alterada. O que há sempre de incoactivo, de incompleto e de constrangedor no presente não é já um sinal de menor realidade.
Mas então a verdade de um ser já não é aquilo em que se tornou no fim ou a sua essência, mas o seu devir activo ou a sua existência. E se, como Lavelle dizia em tempos, nos julgamos mais perto dos mortos que amámos do que dos vivos, é porque já nos não põem em dúvida e daqui para o futuro podemos sonhá-los a nosso gosto. Esta piedade é quase ímpia. A única recordação que lhes diz respeito é a que se refere ao uso que faziam de si próprios e do seu mundo, o acento da sua liberdade na incompletude da vida. O mesmo frágil princípio faz-nos viver e dá ao que fazemos um sentido inesgotável.

Maurice Merleau-Ponty, in 'O Elogio da Filosofia'

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Não há Casamento com Luxúria...

No casamento a revitalização da luxúria só pode ser conseguida enfraquecendo e destruindo os seus laços. Quero dizer, amantes. É por isso que a luxúria se torna um pecado, pois está destinada a morrer, e se ainda se acende isso só acontece por causa das mulheres fora do casamento. É assim que chegamos à ideia original de pecado quando a luxúria é a inimiga do amor. A cópula entre marido e mulher não é pecaminosa porque é feita sem luxúria. Todos os casos extraconjugais são luxuriosos e por isso pecaminosos. Assim, todas as tentativas de reavivar a luxúria no casamento são más, incluindo o afastamento.
Porque reacender a luxúria por um curto período ameaça um casamento, sujeitando a esposa à tentação de adultério na separação. O casamento foi criado para destruir a paixão embora a princípio atraia com paixão. Calcar a paixão com a paixão. O casamento seduz com a legitimidade e com a disponibilidade da luxúria. Ao fazermos o juramento de fidelidade, não suspeitamos que estamos também a renunciar à luxúria. O casamento foi criado para distrair as pessoas da luxúria com a ajuda da luxúria. Por isso, para bem de um casamento forte, tem se aguentar o seu desaparecimento. Não sustenham a respiração! A luxúria é o orgulho do corpo; o amor é o orgulho da alma, um orgulho que não é mais que a luxúria da alma.
Alexander Puschkine, in 'Diário Secreto'

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A Piedade...

A piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a actividade do amor de si próprio, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo o selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, faz a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faz o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos subtis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo o homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.
Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Ciclo do Progresso...

Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens, o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas.
À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome, abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.

Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Cuida de Ser Tal e Qual Desejas Parecer...

Ao ler e ouvir, fá-lo com atenção; não disperses o entendimento, mas força-o a estar atento ao que faz e ao que tem diante de si, e não alhures. Se sai do caminho, chama-o de volta sem ruído, e guarda para outra ocasião os pensamentos alheios ao estudo. Sabe que perdes tempo e trabalho se não estás atento ao que lês ou ao que ouves. Não tenhas vergonha de perguntar o que não sabes, nem de aprender com outrem. Disso nunca se envergonham os homens insignes; antes, sim, de não saberem ou de não quererem aprender. Não te vanglories de saber o que não sabes, mas pergunta-o àqueles que acreditas o saibam. Se queres parecer sábio, trabalha por sê-lo, que para isso não há caminho suave. Semelhantemente, a maneira mais fácil de se parecer bom é sendo-o realmente. Enfim, em todas as coisas, cuida de ser tal e qual desejas parecer, porquanto, de outro modo, assaz vão será o teu desejo. O tempo põe a descoberto o que é falso e fingido, e dá força à verdade; como se costuma dizer, não há mentira que não se descubra.
Juan Luis Vives, in "Introdução à Sabedoria"

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Importância da Autoridade...

É inútil alongar-me demoradamente sobre a importância da autoridade. São muito poucas as pessoas civilizadas capazes de uma existência perfeitamente autónoma ou tão-só de juízo independente. Não nos é possível representar em toda a sua amplitude a necessidade de autoridade e a fraqueza interior dos seres humanos.
Sigmund Freud, in 'As Palavras de Freud'