domingo, 12 de agosto de 2012

As Desvantagens das Nossas Paixões...


Quanto mais um homem se emaranha numa paixão, tanto mais os acontecimentos, em si indiferentes, se traduzem para ele em dor, enganando justamente, pela sua indiferença, a avidez tensa em que esse homem se encontra. Um ambicioso sofrerá porque uma pessoa célebre não lhe reconheceu importância; essa mesma pessoa célebre tentará insuflar escrúpulos de tentação a algum evangélico de quem procurará a conversação; escrúpulos que, por sua vez, irritarão um individualista, que será atingido por eles, malgrado seu. A inveja, ambição ruminada, está na base de todas as angústias que sofremos. Não toleramos que uma coisa aconteça indiferentemente, por acaso, escapando à nossa chancela.
Qualquer género de fervor acarreta consigo a tendência para sentir uma lei preestabelecida na vida, uma lei que castiga os que abusam ou descuram esse mesmo fervor. Um estado de paixão - mesmo que fosse a embriaguez da absoluta autodeterminação - organiza e anima de tal forma o Universo que toda a desgraça, parece, depois, provocada por uma ruptura do equilíbrio vital dessa paixão difusa, que, assim, se defende como um corpo vivo. E, segundo o temperamento de cada um, teremos a sensação de que abusámos, ou de que fomos inferiores; de qualquer forma, sentir-nos-emos organicamente punidos pela própria lei da paixão e do Universo.
O que quer dizer que todo o fervor acarreta consigo a convicção supersticiosa de ter de prestar contas à própria lógica das coisas. Mesmo o fervor de um ateu pela transcendência de uma lei.

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

sábado, 11 de agosto de 2012

A Falácia do Homem Livre...


Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.


Albert Camus, in "A Queda

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Grandes Momentos Irreversíveis...


Os instantes de grande dor ou de grande agitação, mesmo na história universal, têm uma necessidade que convence; desencadeiam um sentido da actualidade e um sentimento de tensão que nos oprimem. Essa agitação pode provocar seguidamente a vinda da beleza e da luz, assim como da loucura e das trevas; o que se produz reveste, em todo o caso, as aparências da grandeza, da necessidade, da importância; distingue-se e destaca-se dos acontecimentos quotidianos.


Hermann Hesse, in 'O Jogo das Contas de Vidro'



domingo, 5 de agosto de 2012

A Preguiça como Obstáculo à Liberdade...

A preguiça e a cobardia são as causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio, continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois aprenderiam por fim muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer uma tal tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional ou, antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado a este movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e iniciar então um andamento seguro.
Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for dada liberdade. Com efeito, sempre haverá alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem para por si mesmo pensar. Importante aqui é que o público, o qual antes fora por eles sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso incitado. Semear preconceitos é muito pernicioso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente, ou os seus predecessores, foram os seus autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente pode chegar à ilustração. Por meio de uma revolução poderá talvez levar-se a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.




Emmanuel Kant, in ' Resposta à Pergunta: O Que é o Iluminismo?'

domingo, 8 de julho de 2012

A Torpe Sociedade onde Nasci...

Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.

Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!

Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vítima humilde ou ser algoz...


E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!

Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...

António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."


sábado, 7 de julho de 2012

O Comportamento Simbólico e o Comportamento Inequívoco...

Na verdade, encontramos desde as origens da história humana estas duas formas de comportamento, a simbólica e a inequívoca. O ponto de vista do inequívoco é a lei do pensamento e da acção despertos, que domina quer uma conclusão irrefutável da lógica quer o cérebro de um chantagista que pressiona passo a passo a sua vítima, uma lei que resulta das necessidades da vida, às quais sucumbiríamos se não fosse possível dar uma forma inequívoca às coisas. O símbolo, por seu lado, é a articulação de ideias próprias do sonho, é a lógica deslizante da alma, a que corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da religião; mas também tudo o que na vida existe de vulgares inclinações e aversões, de concordância e repulsa, de admiração, submissão, liderança, imitação e seus contrários, todas estas relações do homem consigo e com a natureza, que ainda não são puramente objectivas e talvez nunca venham a sê-lo, só podem ser entendidas em termos simbólicos.

Aquilo a que se chama a humanidade superior mais não é, com certeza, do que a tentativa de fundir estas duas metades da vida, a do símbolo e a da verdade, cuidadosamente separadas antes. Mas quando separamos num símbolo tudo aquilo que talvez possa ser verdadeiro do que é apenas espuma, o que acontece geralmente é que se ganha um pouco de verdade, mas se destrói todo o valor que o símbolo tinha. Por isso, talvez esta separação tenha sido inevitável na evolução do espírito, mas produziu o efeito que se obtém quando se ferve uma substância para a engrossar e, ao fazê-lo, provocamos a evaporação do que nela existe de mais intrínseco. Hoje é quase impossível não ter a impressão de que os conceitos e as regras da vida moral são apenas símbolos recozidos, envoltos nos insuportáveis e gordurosos vapores da cozinha da humanidade.



Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Feliz Dia para Quem É...



Feliz dia para quem é

O igual do dia,

E no exterior azul que vê

Simples confia!


Azul do céu faz pena a quem

Não pode ser

Na alma um azul do céu também

Com que viver


Ah, e se o verde com que estão

Os montes quedos

Pudesse haver no coração

E em seus segredos!


Mas vejo quem devia estar

Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

Ah, a ironia


De só sentir a terra e o céu

Tão belo ser

Quem de si sente que perdeu

A alma p’ra os ter!


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sábado, 7 de janeiro de 2012

Só Chegamos a Ser uma Parte Mínima do que Poderíamos Ser...



A actividade de comprar conclui em decidir-se por um objecto; mas é também antes uma eleição, e a eleição começa por perceber as possibilidades que oferece o mercado. De onde resulta que a vida, no seu modo «comprar», consiste primeiramente em viver as possibilidades de compra como tais. Quando se fala de nossa vida sói esquecer-se disto, que me parece essencialíssimo: a nossa vida é em todo o instante e antes que nada consciência do que nos é possível. Se em cada momento não tivéssemos à nossa frente mais que uma só possibilidade, careceria de sentido chamá-la assim. Seria apenas pura necessidade. Mas ai está: esse estranhíssimo facto da nossa vida possui a condição radical de que sempre encontra ante si várias saídas, que por serem várias adquirem o carácter de possibilidades entre as quais havemos de decidir. Tanto vale dizer que vivemos como dizer que nos encontramos num ambiente de determinadas possibilidades. A este âmbito costuma chamar-se «as circunstâncias». Toda a vida é achar-se dentro da «circunstância» ou mundo. Porque este é o sentido originário da idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida, mas que é a sua autêntica periferia. Representa o que podemos ser; portanto, a nossa potencialidade vital. Esta tem de se concretizar para se realizar, ou, dito de outra maneira, chegamos a ser só uma parte mínima do que poderíamos ser. Daí que nos parece o mundo uma coisa tão enorme, e nós, dentro dele, uma coisa tão pequena. O mundo ou a nossa vida possível é sempre mais que o nosso destino ou vida efectiva.


Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Corremos Dentro dos Corpos...



Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo. Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto, in 'Antídoto'

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Egoísmo Relativo...

Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade. Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas. Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.

Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose'

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Homem - Um Ser Egoísta...

O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência. Desse modo, todas as acções dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada acção. Nas suas acções baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: "Tudo para mim e nada para os outros" é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.


Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Saber Estar...

És impaciente e difícil de contentar. Se estás só, queixas-te da solidão; se na companhia dos outros, tu os chamas de conspiradores e de ladrões, e achas defeitos nos teus próprios pais, filhos, irmãos e vizinhos. No entanto, quando estás sozinho, deves falar em tranquilidade e liberdade e te considerares igual aos deuses. E quando estás em companhia numerosa, não a deves chamar de turba aborrecida ou ruidosa, mas de assembleia e tribunal, dessarte aceitando tudo com contentamento.


Epicteto, in 'O Festival Da Vida'

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Viver Plenamente os Desejos...

Quanto ao facto de saber se o sexual e o religioso são antagónicos e opostos, eu responderia do seguinte modo: todos os elementos ou aspectos da vida, por muito pobres, por muito duvidosos que sejam (para nós), são susceptíveis de conversão, e na verdade devem ser transpostos para outro nível, de acordo com a nossa maturidade e inteligência.O esforço visando eliminar os aspectos «repugnantes» da existência, que é a obsessão dos moralistas, não só é absurdo, como fútil. É possível ser-se bem sucedido na repressão dos pensamentos e desejos, dos impulsos e tendências feios e «pecaminosos». mas os resultados são manifestamente desastrosos. (É estreita a margem que separa um santo e um criminoso). Viver plenamente os seus desejos e, ao fazê-lo, modificar subtilmente a natureza destes, é o objectivo de todo o indivíduo que aspira a desenvolver-se. Mas o desejo é soberano e inextirpável, mesmo quando, como dizem os budistas, se converte no seu contrário. Para alguém se poder libertar do desejo, tem que desejar fazê-lo.


Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

domingo, 27 de novembro de 2011

A Mulher Portuguesa Tem um Bocado de Pena dos Homens....

A mulher portuguesa não é só Fada do Lar, como Bruxa do Ar, Senhora do Mar e Menina Absolutamente Impossível de Domar. É melhor que o Homem Português, não por ser mulher, mas por ser mais portuguesa. Trabalha mais, sabe mais, quer mais e pode mais. Faz tudo mais à excepção de poucas actividades de discutível contribuição nacional (beber e comer de mais, ir ao futebol, etc). Portugal (i.e., os homens portugueses) pagam-lhe este serviço, pagando-lhes menos, ou até nada. O pior defeito do Homem português é achar-se melhor e mais capaz que a Mulher. A maior qualidade da Mulher Portuguesa é não ligar nada a essas crassas generalizações, sabendo perfeitamente que não é verdade. Eis a primeira grande diferença: o Português liga muito à dicotomia Homem/Mulher; a Portuguesa não. O Português diz «O Homem isto, enquanto a Mulher aquilo». A Portuguesa diz «Depende». A única distinção que faz a Mulher Portuguesa é dizer, regra geral, que gosta mais dos homens do que das mulheres. E, como gostos não se discutem, é essa a única generalização indiscutível. A Mulher Portuguesa é o oposto do que o Homem Português pensa. Também nesta frase se confirma a ideia de que o Homem pensa e a Mulher é, o Homem acha e a Mulher julga, o Homem racionaliza e a Mulher raciocina. E mais: mesmo esta distinção básica é feita porque este artigo não foi escrito por uma Mulher. Porque é que aquilo que o Homem pensa que a Mulher é, é o oposto daquilo que a Mulher é, se cada Homem conhece de perto pelo menos uma Mulher? Porque o Português, para mal dele, julga sempre que a Mulher «dele» é diferente de todas as outras mulheres (um pouco como também acha, e faz gala disso, que ele é igual a todos os homens). A Mulher dele é selvagem mas as outras são mansas. A Mulher dele é fogo, ciúme, argúcia, domínio, cuidado. As outras são todas mais tépidas, parvas, galinhas, boazinhas, compreensíveis. Ora a Mulher Portuguesa é tudo menos «compreensiva». Ou por outra: compreende, compreende perfeitamente, mas não aceita. Se perdoa é porque começa a menosprezar, a perder as ilusões, e a paciência. Para ela, a reacção mais violenta não é a raiva nem o ódio – é a indiferença. Se não se vinga não é por ser «boazinha» – é porque acha que não vale a pena. A Mulher Portuguesa, sobretudo, atura o Homem. E o Homem, casca grossa, não compreende o vexame enorme que é ser aturado, juntamente com as crianças, o clima e os animais domésticos. Aturar alguém é o mesmo que dizer «coitadinho, ele não passa disto…» No fundo não é mais do que um acto de compaixão. A Mulher Portuguesa tem um bocado de pena dos Homens. E nisto, convenhamos, tem um bocado de razão. O que safa o Homem, para além da pena, é a Mulher achar-lhe uma certa graça. A Mulher não pensa que este achar-graça é uma expressão superior da sua sensibilidade – pelo contrário, diverte-se com a ideia de ser oriundo de uma baixeza instintiva e pré-civilizacional, mas engraçada. Considera que aquilo que a leva a gostar de um Homem é uma fraqueza, um fenómeno puramente neuro-vegetativo ou para-simpático – enfim, pulsões alegres ou tristemente irresistíveis, sem qualquer valor. E chegamos a outra característica importante. É que a Mulher Portuguesa, se pudesse cingir-se ao domínio da sua inteligência e mais pura vontade, nunca se meteria com Homem nenhum. Para quê? Se já sabe o que o Homem é? Aliás, não fossem certas questões desprezíveis da Natureza, passa muito bem sem os homens. No fundo encara-os como um fumador inveterado encara os cigarros: «Eu não devia, mas.. » E, como assim é, e não há nada a fazer, fuma-os alegremente com a atitude sã e filosófica do «Que se lixe». Homens, em contrapartida, não podiam ser mais dependentes. Esta dependência, este ar desastrado e carente que nos está na cara, também vai fomentando alguma compaixão da parte das mulheres. A Mulher Portuguesa também atura o Homem porque acha que «ele sozinho, coitado; não se governava». O ditado «Quem manda na casa é ela, quem manda nela sou eu» é uma expressão da vacuidade do machismo português. A Mulher governa realmente o que é preciso governar, enquanto o homem, por abstracção ou inutilidade, se contenta com a aparência idiota de «mandar» nela. Mas ninguém manda nela. Quando muito, ela deixa que ele retenha a impressão de mandar. Porque ele, coitado, liga muito a essas coisas. Porque ele vive atormentado pelo terror que seria os amigos verificarem que ele, na realidade, não só na rua como em casa não «manda» absolutamente nada. «Mandar» é como «enviar» – é preciso ter algo para mandar e algo ao qual mandar. Esses algos são as mulheres que fazem. O Homem é apenas alguém armado em carteiro. É o carteiro que está convencido que escreveu as cartas todas que diariamente entrega. A Mulher é a remetente e a destinatária que lhe alimenta essa ilusão, porque também não lhe faz diferença absolutamente nenhuma. Abre a porta de casa e diz «Muito obrigada». É quase uma questão de educação. A imagem da «Mulher Portuguesa» que os homens portugueses fabricaram é apenas uma imagem da mulher com a qual eles realmente seriam capazes de se sentirem superiores. Uma galinha. Que dizer de um homem que é domador de galinhas, porque os outros animais lhe metem medo? Na realidade, A Mulher Portuguesa é uma leoa que, por força das circunstâncias, sabe imitar a voz das galinhas, porque o rugir dela mete medo ao parceiro. Quando perdem a paciência, ou se cansam, cuidado. A Mulher portuguesa zangada não é o «Agarrem-me senão eu mato-o» dos homens: agarra mesmo, e mata mesmo. Se a Padeira de Aljubarrota fosse padeiro, é provável que se pusesse antes a envenenar os pães e ir servi-los aos castelhanos, em vez de sair porta fora com a pá na mão.


Miguel Esteves Cardoso, in ' A Causa das Coisas '

A Desordem da Minha Natureza...

(...) enfrentei pela primeira vez o meu ser natural enquanto decorriam os meus noventa anos. Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prémio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reacção contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio. Descobri, por fim, que o amor não é um estado de alma mas um signo do Zodíaco.

Gabriel García Marquez, in 'Memória das Minhas Putas Tristes'

Sem Medo nem Esperança...

Li no nosso Hecatão que pôr termo aos desejos é proveitoso como remédio aos nossos temores. Diz ele: «deixarás de ter medo quando deixares de ter esperança». Perguntarás tu como é possível conciliar duas coisas tão diversas. Mas é assim mesmo, amigo Lucílio: embora pareçam dissociadas, elas estão interligadas. Assim como uma mesma cadeia acorrenta o guarda e o prisioneiro, assim aquelas, embora parecendo dissemelhantes, caminham lado a lado: à esperança segue-se sempre o medo. Nem é de admirar que assim seja: ambos caracterizam um espírito hesitante, preocupado na expectativa do futuro.
A causa principal de ambos é que não nos ligamos ao momento presente antes dirigimos o nosso pensamento para um momento distante e assim é que a capacidade de prever, o melhor bem da condição humana, se vem a transformar num mal. As feras fogem aos perigos que vêem mas assim que fugiram recobram a segurança. Nós tanto nos torturamos com o futuro como com o passado. Muitos dos nossos bens acabam por ser nocivos: a memória reactualiza a tortura do medo, a previsão antecipa-a; apenas com o presente ninguém pode ser infeliz!

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A Boa Disposição

A boa disposição é o grande lubrificante da roda da vida. Torna o trabalho mais leve, reduz as dificuldades e mitiga os infortúnios. A boa disposição dá um poder criador que os pessimistas não conseguem ter. Uma disposição alegre, esparançosa e optimista torna a vida mais suave, alivia a sua inevitável monotonia e amortece os solavancos da estrada da vida.


Alfred Montapert, in 'A Suprema Filosofia do Homem'

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Porque é que os Homens não Compreendem as Mulheres...

Tu estás convencida há vários anos de que eu não te compreendo. Esta é sempre a teoria das mulheres, que não são compreendidas, que não são queridas, que não são adoradas, as queixas montanhas grandes, queixas enormes, sempre a justificar uma infelicidade que lhes vem lá do fundo da criação do mundo, do útero, da terra, as mulheres reflectem o útero feminino da terra, um útero cheio de aflições, em conclusão, queixam-se de tudo então entre os quarenta e os cinquenta, esse útero funciona nas alturas, é um útero cósmico que já não é parte de uma mulher, pertence à mulher do mundo. Há muita verdade no que dizes, o homem desinteressa-se facilmente, depois do acto do amor, depois logo sacode as penas, arrebita, passa à frente, domina outro mundo, a mulher fica fechada, acanhada nesse encontro muito íntimo, nesse seu mais fundo dos fundos, na identidade uterina com a ideia da criação, da reprodução da génese, salta, salta, forma-se na mulher a visão do caos a que só ela pelo amor pode dar uma nova regra, pelo domínio da paixão, pela companhia, para isso tem de ser compreendida, ela julga que é compreendida, tem de justificar a sua infelicidade pela compreensão do amor, de um outro amor, a mulher busca no outro amor o amor definitivo, amor que nunca aparece, é o poder fantásmico de convicção, que rompe todas as barreiras, a mulher atira-se, não sabe onde nem como, é capaz dos maiores actos de heroísmo clandestino, aparece, vai, surge, abre-se, mostra o que é o amor, a sua entrega total.


Ruben A., in 'Silêncio para 4'

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas.

A mulher, o mais sublime dos ideais.

Deus fez para o homem um trono; para a mulher fez um altar.

O trono exalta e o altar santifica.

O homem é o cérebro; a mulher, o coração.

O cérebro produz a luz; o coração produz amor.

A luz fecunda; o amor ressuscita.

O homem é o génio; a mulher é o anjo.

O génio é imensurável; o anjo é indefenível;

A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher é a virtude extrema;

A glória promove a grandeza e a virtude, a divindade.

O homem tem a supremacia; a mulher, a preferência.

A supremacia significa a força; a preferência representa o direito.

O homem é forte pela razão; a mulher, invencível pelas lágrimas.

A razão convence e as lágrimas comovem.

O homem é capaz de todos os heroísmos; a mulher, de todos os martírios.

O heroísmo enobrece e o martírio purifica.

O homem pensa e a mulher sonha.

Pensar é ter uma larva no cérebro; sonhar é ter na fronte uma auréola.

O homem é a águia que voa; a mulher, o rouxinol que canta.

Voar é dominar o espaço e cantar é conquistar a alma.

Enfim, o homem está colocado onde termina a terra; a mulher, onde começa o céu.


Victor Hugo

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um Sentido Para a Vida...

Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer. A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.
Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia.


Raul Brandão, in " Se Tivesse de Recomeçar a Vida "