quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O Primeiro Amor...

Questão é curiosa nesta Filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo? Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogénito do coração, o morgado dos afectos, a flor do desejo, e as primícias da vontade. Contudo, eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor. É verdade que o primeiro amor é o primogénito do coração; porém a vontade sempre livre não tem os seus bens vinculados. Seja o primeiro, mas não por isso o maior.
Padre António Vieira, in "Sermões"

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Tolerância às Opiniões...

Para que os homens possam sentir-se felizes com a minha companhia, é necessário antes de tudo que eu tenha a grande força de ver como prováveis as opiniões a que aderiram, desde que as não venham contradizer os factos que posso observar; não devo supor-me infalível; não devo considerar-me a inteligência superior e única entre o bando de pobres seres incapazes de pensar; cumpre-me abafar todo o ímpeto que possa haver dentro de mim para lhes restringir o direito de pensarem e de exprimirem, como souberem e quiserem, os resultados a que puderam chegar; de outro modo, nada mais faria de que contribuir para matar o universo: porque ele só vive da vida que lhe insufla o pensamento poderoso e livre.
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes '

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

As Quatro Ignorâncias do Amante...

Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor. Ou porque não se conhecesse a si: ou porque não conhecesse a quem amava: ou porque não conhecesse o amor: ou porque não conhecesse o fim onde há-de parar, amando. Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara. Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. Se não conhecesse o fim em que havia de parar, amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar se os previra.
Padre António Vieira, in "Sermões"

sábado, 19 de dezembro de 2009

Para Um Homem Se Ver a Si Mesmo...

Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três cousas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para essa vista são necessários olhos, é necessário luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Padre António Vieira, in 'Sermões Escolhidos (Sermão da Sexagésima)'

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A Memória...

Quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário, quanto menos, mais facilmente o esquecemos. Por exemplo, se eu transmitir a alguém uma porção de palavras soltas, muito mais dificilmente as reterá do que se apresentar as mesmas palavras em forma de narração. Reforçada também sem auxílio do intelecto, a saber, pela força mediante a qual a imaginação ou o sentido a que chamam comum é afectado por alguma coisa singular corpórea. Digo singular, pois a imaginação só é afectada por coisas singulares. Com efeito, se alguém ler, por exemplo, só uma novela de amor, retê-la-á muito bem enquanto não ler muitas outras desse género, porque então vigora sozinha na imaginação; mas, se são mais do género, imaginam-se todas juntas e facilmente são confundidas.
Digo também corpórea, pois a imaginação só é afectada por corpos. Como, portanto, a memória é fortalecida pelo intelecto e também sem ele, conclui-se que é algo diverso do intelecto e que não há nenhuma memória nem esquecimento a respeito do intelecto visto em si. O que será, pois, a memória? Nada mais do que a sensação das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da sensação; o que também a reminiscência mostra. Realmente, nesta a alma pensa nessa sensação, mas não sob uma contínua duração; e assim a ideia desta sensação não é a própria duração da sensação, quer dizer, a própria memória. Se, porém, as próprias ideias sofrem alguma corrupção, veremos na filosofia. E se isso parece a alguém muito absurdo, bastará para o nosso propósito que pense ser tanto mais facilmente retida uma coisa quanto mais for singular, como se vê do exemplo da novela que acabamos de dar. Além disso, quanto mais uma coisa é inteligível, mais facilmente é retida. Logo, não podemos deixar de reter uma coisa sumamente singular e somente inteligível.

Baruch Espinoza, in 'Tratado da Correcção do Intelecto'

sábado, 12 de dezembro de 2009

Contrastes Trágicos...

Quem não quer ver o que há de elevado num homem olha com maior agudeza para aquilo que nele é baixo e superficial – e assim se revela a si mesmo. É bastante mau! Sempre a velha história! Quando se acaba de construir a casa nota-se que ao construí-la, sem dar por isso, se aprendeu algo que simplesmente se devia ter sabido absolutamente antes de – começar a construir. O eterno e maçador «tarde de mais!» - A melancolia de todo o terminado!... Os homens de profunda tristeza denunciam-se quando são felizes: têm um modo de pegar na felicidade como se quisessem esmagá-la e sufocá-la, por ciúme – ah, sabem bem de mais que lhes foge!

Friedrich Nietzsche, in "Para Além de Bem e Mal"

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A Distorção do Entendimento...

Que difícil é propor um problema ao entendimento alheio sem corromper esse entendimento pela maneira de propor! Se dizemos: acho isto belo, acho obscuro, ou outra coisa semelhante, arrastamos a imaginação para este juízo, ou irritamo-la, levando-a ao juízo contrário. Mais vale nada dizer, e então o outro julga segundo o que é, ou segundo o que é naquele momento, e de acordo com o que as outras circunstâncias, de que não somos responsáveis, lá tiverem posto. Mas pelo menos nós não pusemos nada; a não ser que o nosso silêncio tenha também o seu efeito, segundo o sentido e a interpretação que ele estiver disposto a atribuir-lhe, ou segundo o que depreende dos movimentos e da expressão do rosto, ou do tom de voz, conforme for melhor ou pior fisionomista: tão difícil é não deslocar um entendimento da sua base natural, ou antes, tão pouco um entendimento tem de firme e estável!
Blaise Pascal, in "Pensamentos"

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A Hipocrisia do Amor ao Povo...


Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha.
Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve. Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que percebessem nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem. Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.

Agostinho da Silva, in 'Considerações'

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Ser Diferente...

A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade; tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa; não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças; teve a coragem de ser cão entre as ovelhas; nunca baliu; e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos.
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes'

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Verdadeira Virtude...

Não se pode pensar em virtude sem se pensar num estado e num impulso contrários aos de virtude e num persistente esforço da vontade. Para me desenhar um homem virtuoso tenho que dar relevo principal ao que nele é voluntário; tenho de, talvez em esquema exagerado, lhe pôr acima de tudo o que é modelar e conter. Pela origem e pelo significado não posso deixar de a ligar às fortes resoluções e à coragem civil. E um contínuo querer e uma contínua vigilância, uma batalha perpétua dada aos elementos que, entendendo, classifiquei como maus; requer as nítidas visões e as almas destemidas. Por isso não me prende o menino virtuoso; a bondade só é nele o estado natural; antes o quero bravio e combativo e com sua ponta de maldade; assim me dá a certeza de que o terei mais tarde, quando a vontade se afirmar e a reflexão distinguir os caminhos, com material a destruir na luta heróica e a energia suficiente para nela se empenhar. O que não chora, nem parte, nem esbraveja, nem resiste aos conselhos há-de formar depois nas massas submissas; muitas vezes me há-de parecer que a sua virtude consiste numa falta de habilidade para urdir o mal, numa falta de coragem para o praticar; e, na verdade, não posso ter grande respeito pelas amibas que se sobrevivem.
Só os sacristães são levados, por índole e ofício, a venerar todos os santos, sem pôr em mais alto lugar os que encheram sua vida de esquinas e no dobrar de cada uma sofreram agonias e suaram de angústia; mas, para nós, foram mais longe os que mais se feriram nos espinhos de uma remissa natureza; se a venceram merecem estar no céu; se não venceram, o próprio esforço lho devia merecer; no entanto já o inferno é uma forma de glória; para os outros seria bom que se criasse um novo recinto de imortalidade: e só o vejo estabelecido no lodo espapaçado de um fundo tranquilo, sem pregas de correntes nem restos de naufrágios; exactamente um cemitério de medusas. Para o que é bom por ter nascido bom e a única virtude consistiria em ser mau; aqui se mostrariam originalidade e coragem, mérito, portanto; porque ser mau por ter nascido mau só lhe deveria dar, como aos do lado contrário, o direito ao eterno silêncio. Por aqui se compreende que as vidas dos Sorel tenham sempre ressonância nas almas Stendhal; e também a sensibilidade, a delicadeza, todo o fundo de boas qualidades de certos grandes criminosos. Sei bem os perigos que tal doutrina pode ter transportada ao social e sei também a maneira de pôr de lado a objecção, alargando o conceito de virtude, dando-o como o desejo de superar e não como o desejo de combater; mas de propósito fiquei no que a virtude tem de luta entre a natureza e a vontade.

Agostinho da Silva, in 'Considerações'

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Leia, Ouça, Veja, mas sobretudo, Pense...

Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; o que nos dizem muitas vezes nos parece de nenhuma importância, mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no conteúdo do que se disse; porventura a palavra-chave estava aí, mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; e no vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. Ouça. No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem descendia do macaco notou-se, para os distinguir, que um, mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, mesmo que antropóide superior, nem olhava o desenho. Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde as pinturas ou gravuras rupestres, cujo verdadeiro significado ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo significado igualmente muitas vezes nos podemos interrogar e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, da publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão de iluminar, inspirar e consagrar o mundo. Imagem o cerca. Veja. Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima de pensamento, já livre de muita impureza de minério bruto, porquanto antes do seu outros pensamentos o pensaram; mas, por o pensarem, alguma outra impureza lhe terão juntado. Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum sentimento, excepto o do amor de entender, de ver o mais possível claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe que nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, pelo critério da coerência, pela concordância dos factos; acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta para certezas que nunca deixe de ver como provisórias, excepto uma, a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; ao resto porá de lado até que o seja, até que possa pôr nos pratos da sua balancinha de razão. A tudo pese. Pense.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

domingo, 6 de dezembro de 2009

O Homem de Ideias

Não é lícito dizer que tem ideias aquele que as foi buscar a outro, que envergou um sistema já pronto, que não o construiu ele mesmo a pouco e pouco, à medida que se ia alargando e aprofundando a sua visão do mundo; para «ter ideias» é necessário um trabalho de autoformação, de modelação contínua da alma, uma assimilação que não cessa de tudo o que uma determinada personalidade encontra de assimilável no que a cerca, ou passado ou presente; a ideia surge da vida própria e não da vida dos outros; o homem que tem individualidade (é muito difícil ser indivíduo), ou a busca, pode inserir no seu pensamento fragmentos de pensamento alheio, mas apenas insere aqueles que, como algarismos num número, mudam de valor conforme a posição; inventa uma coluna vertebral que só a ele pertence e caracteriza, depois procura o que se lhe pode adaptar sem desarmonia nem contradição.
Faz como o caracol que se não instala na concha de outro caracol; fabrica-a e aumenta-a ao mesmo ritmo que se fabrica e aumenta o corpo que a enche; os Eremitas são bichos traiçoeiros. Aprender ideias não tem valor senão quando nos serve para formar ideias; se apenas as queremos usar não merecemos nem a confiança nem a consideração de ninguém; o saber é puramente exterior e muito mais fácil de adquirir do que em geral se supõe. O político que se apresenta com as minhas ideias políticas, o filósofo que se apresenta com as minhas ideias filosóficas (palavras de Alcestes), o pedagogo que se apresenta com as minhas ideias pedagógicas, mas que reconheço não terem nem a minha política, nem a minha filosofia, nem a minha pedagogia, não têm, na verdade, as mesmas ideias; usam-nas somente; são como actores a quem tivesse emprestado os meus fatos e que jamais confundirei comigo; decerto não subirei ao palco para lhes entregar o meu país, ou a direcção da minha vida, ou a educação de um moço; posso ainda admirá-los se representarem bem: mas sei o significado primitivo de hipócrita.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

sábado, 5 de dezembro de 2009

A Indiferença ou a Paixão pelos Outros...

O que é mais proveitoso — perguntava eu — representar o mundo como pequeno ou como grande? Vejamos como eu resolvia o assunto: os homens eminentes, os capitães famosos, os estadistas competentes, em suma, todos os conquistadores e todos os chefes que se elevam pela violência acima dos outros homens, devem ser feitos de tal maneira que o Mundo lhes deve parecer como um tabuleiro de damas. Se assim não fosse, eles não teriam a rudeza e a impassibilidade necessárias para subordinarem audaciosamente aos seus imprevisíveis planos a felicidade e os sofrimentos dos indivíduos isolados, sem se importarem nada com isso. Em contrapartida, uma tão limitada concepção pode levar os homens a não realizarem coisa alguma, porque todo aquele que considera a humanidade como uma coisa sem importância acabará por a achar insignificante e por soçobrar na indiferença e na passividade. Desdenhoso de tudo, preferirá a inércia à acção sobre os espíritos, sem contar que a sua insensibilidade, a sua ausência de simpatia e a sua letargia chocarão toda a gente, ofendendo constantemente um mundo imbuído do seu próprio valor. Assim se lhe fecharão todas as vias de um sucesso imprevisto. Será mais razoável — perguntava eu, então — ver na humanidade qualquer coisa de grande, de magnífico e de importante, digna de todos os zelos e de todos os esforços, tendentes a adquirir consideração e estima? Objectar-me-ão que esta concepção amplificadora e respeitosa implica uma certa depreciação de si mesmo, uma espécie de mal-estar, e que o Mundo se afastará, sorrindo, do rapaz ingénuo e deferente para procurar adoradores mais viris. Por outro lado, uma tal confiança e um tal fervor oferecem vantagens consideráveis. Com efeito, quem concede grande importância às coisas e aos seres sabe de antemão que eles lhe serão gratos pela sua opinião lisonjeira. Além disso, os seus pensamentos e o seu comportamento impregnar-se-ão duma seriedade, duma paixão e de um tal sentimento de responsabilidade que, tornando-o ao mesmo tempo um homem amável e importante, o poderão levar aos sucessos e às façanhas mais insignes.
Thomas Mann, in "As Confissões de Félix Krull"

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Solitário...

As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se profundas no silêncio, ganham significado, transformam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido.

Thomas Mann, in "Morte em Veneza"

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Duas Espécies de Génio...


Há duas espécies de génio: um que, antes de mais, fecunda e quer fecundar outros, e outro que prefere ser fecundado e parir. E da mesma maneira há entre os povos geniais aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a missão secreta de formar, amadurecer e aperfeiçoar - os gregos, por exemplo, foram um povo desta espécie, assim como os franceses - ; e outros que têm de fecundar e ser a causa de novas ordens de vida, - como os judeus, os romanos e talvez, perguntando-se com toda a modéstia, os alemães? - povos atormentados e extasiados com febres desconhecidas e irresistivelmente impelidos para fora de si próprios, apaixonados e ávidos de raças estranhas (aqueles que se «deixam fecundar» -) e, com tudo isso, ávidos de domínio, como tudo o que se sabe cheio de força geradora e, por conseguinte, escolhido «pela graça de Deus». Estas duas espécies procuram-se como o homem e a mulher; mas também se dão mal mutuamente, - como o homem e a mulher.

Friedrich Nietzsche, in "Para Além de Bem e Mal"

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A Vida não me Desapontou...

Não, a vida não me desapontou! Pelo contrário, todos os anos a acho melhor, mais desejável, mais misteriosa... desde o dia em que vejo a mim a grande libertadora, a ideia de que a vida podia ser experiência para aqueles que procuram saber, e não dever, fatalidade, duplicidade!... Quanto ao próprio conhecimento, seja ele para outros aquilo que quiser, um leito de repouso, ou o caminho para um leito de repouso, ou distracção ou vagabundagem, para mim é um mundo de perigos, é um universo de vitórias onde os sentimentos heróicos têm a sua sala de baile. «A vida é um meio de conhecimento»; quando se tem este princípio no coração, pode viver-se não somente corajoso mas feliz, pode-se rir alegremente! E quem, de resto, se ouvirá, portanto, a bem rir e a bem viver se não for primeiramente capaz de vencer e de guerrear? Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Os Quatro Erros...

A educação do homem foi feita pelos seus erros: em primeiro lugar, ele nunca se viu senão imperfeitamente; em seguida, atribuiu-se qualidades imaginárias; em terceiro, sentiu-se em relações falsas diante da natureza e do reino animal; em quarto, nunca deixou de inventar tábuas do bem sempre novas e tomou cada uma delas durante um certo tempo como eterna e absoluta, de tal maneira que o primeiro lugar foi ocupado sucessivamente por este ou aquele instinto ou este ou aquele estado que enobrece esta apreciação. Ignorar o efeito destes quatro erros é suprimir a humanidade, o humanitarismo e a «dignidade humana».
Friedrich Nietzsche, in 'A Gaia Ciência'

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A Única Crítica é a Gargalhada...

A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.
Eça de Queirós, in 'Uma Campanha Alegre'

domingo, 29 de novembro de 2009

A Sabedoria do Corpo...

Tu dizes «eu» e orgulhas-te desta palavra. Mas há qualquer coisa de maior, em que te recusas a aceditar, é o teu corpo e a sua grande razão; ele não diz Eu, mas procede como Eu. Aquilo que a inteligência pressente, aquilo que o espírito reconhece nunca em si tem o seu fim. Mas a inteligência e o espírito quereriam convencer-te que são o fim de todas as coisas; tal é a sua soberba. Inteligência e espírito não passam de instrumentos e de brinquedos; o Em si está situado para além deles. O Em si informa-se também pelos olhos dos sentidos, ouve também pelos ouvidos do espírito. O Em si está sempre à escuta, alerta; compara, submete; conquista, destrói. Reina, e é também soberano do Eu. Por detrás dos teus pensamentos e dos teus sentimentos, meu irmão, há um senhor poderoso, um sábio desconhecido: chama-se o Em si. Habita no teu corpo, é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na própria essência da tua sabedoria. E quem sabe por que é que o teu corpo necessita da essência da tua sabedoria?
Friedrich Nietzsche, in 'Assim Falava Zaratustra'

sábado, 28 de novembro de 2009

Os Mortos São Felizes...

Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão para uma transfiguração sagrada. Mal caem sobre eles as últimas pazadas de terra e o canto dos padres, bárbaro e dolente, se perde com o fumo dos círios, o corpo fica só na plenidão da noite e do silêncio perante a grande vegetação esfomeada, ele vai dar-se ali como pasto às bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra e desfaz-se em podridões: então as raízes começam a sugar e a comer: a podridão transforma-se em seiva; a seiva sobe pelos troncos, estende-se pelos ramos, palpita selvajamente dentro da árvore, engrossa, fecunda, arredonda-se nas exuberâncias dos gomos, e abre-se depois em folhagens, em florescências e em frutos: e o corpo transformado vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente os orvalhos, e ouve as cantigas dos pastores, e vive sereno, repousado, na floresta imensa.
Eça de Queirós, in 'Prosas Bárbaras'

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Aos Pregadores de Moral...

Não quero fazer moral, mas dou o seguinte conselho àqueles que a fazem: se quereis tirar às melhores coisas todo o prestígio e todo o valor, continuai a falar delas como o fazeis. Fazei disso o centro da vossa moral, repeti de manhã à noite a felicidade da virtude, a tranquilidade da alma, a equidade e a justiça imanente; pelo caminho por onde ides, essas excelentes coisas acabarão por ganhar o coração do povo; a voz do povo estará do seu lado; mas, passando de mão em mão, perderão toda a sua duradoura; pior: o seu ouro transformar-se-á em chumbo. Ah! Como sois peritos nessas contra-alquimias! Como sabeis desvalorizar as substâncias mais preciosas! Tentai, portanto, uma vez, a título de experiência, uma receita diferente, se não quereis, como até agora, conseguir o contrário daquilo que procurais: negai essas excelentes coisas, retirai-lhes o aplauso da multidão, entravai a sua circulação, voltai a fazê-las outra vez o objecto de secreto pudor da alma solitária, dizei que a moral é um fruto proibido! Talvez ganheis então para a vossa causa a única espécie de homens que interessa, quero dizer, a raça dos heróis. Mas seria necessário que esta causa inspirasse o receio, e não o desprezo, como fez até aqui! Não seremos, com efeito, tentados hoje a dizer à moral, à maneira de Mestre Eckardt: «Peço a Deus que me liberte de Deus?»
Friedrich Nietzsche, in 'A Gaia Ciência'

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A Vitalidade de uma Nação...

Uma nação vive, próspera, é respeitada, não pelo seu corpo diplomático, não pelo seu aparato de secretarias, não pelas recepções oficiais, não pelos banquetes cerimoniosos de camarilhas: isto nada vale, nada constrói, nada sustenta; isto faz reduzir as comendas e assoalhar o pano das fardas - mais nada. Uma nação vale pelos seus sábios, pelas suas escolas, pelos seus génios, pela sua literatura, pelos seus exploradores científicos, pelos seus artistas. Hoje, a superioridade é de quem mais pensa; antigamente era de quem mais podia: ensaiavam-se então os músculos como já se ensaiam as ideias.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A Carne é Fraca...

Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja: porque proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz - serás casto - a um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? E que uma palavra latina - accedo - dita a tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E quem inventou isso? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas tentações? Que viessem ali duas, três horas para o pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhes o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, porque impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne é fraca!
Eça de Queirós, in 'O Crime do Padre Amaro'

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Supreender-se é Começar a Entender...

Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. É o desporto e o luxo específico do intelectual. Por isso o seu gesto gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par de pupilas bem abertas.

Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ser Surpreendido Por Tudo ou por Nada...

Ser surpreendido por tudo é claro que é estupido, e não ser supreendido por nada é algo que é considerado muito melhor. Mas isso não é realmente verdade. A minha mente não ser surpreendida por nada é muito mais estúpido do que ser surpreendido por tudo. Além disso, não ser surpreendido por nada é quase igual a não se sentir respeito por nada. E é realmente um homem estúpido aquele que é incapaz de sentir respeito.
Fiodor Dostoievski, in "Bobok"

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Abster-se e Suportar...

Limitar os nossos desejos, refrear a nossa cobiça, domar a nossa cólera, tendo sempre em mente que só podemos alcançar uma parte infinitamente pequena das coisas desejáveis, enquanto males múltiplos nos vão ferindo; em suma: abster-se e suportar (Epticteto), é uma regra que, caso não seja observada, nem riqueza nem poder podem impedir que nos sintamos miseráveis. A esse propósito, diz Horácio, nas Epístolas: Em todos os teus actos, lê e pergunta aos doutos Procurando assim conduzir serenamente a tua vida; Que não sejas atormentado pela cobiça sempre insaciável, Nem pelo temor e pela esperança de bens de pouca utilidade.
Arthur Schopenhauer, in ''Aforismos para a Sabedoria de Vida'

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Serenidade Míope...


Os homens comprazem-se com o brando som dos instrumentos musicais e com o canto dos pássaros; comprazem-se com o espectáculo dos animais a brincar e a divertirem-se, mas ficam aborrecidos se estes rosnam, bramem ou ficam irados. Mas quando vêem que as suas próprias vidas são carrancudas, taciturnas, opressas, e perturbadas por paixões intérminas e altamente nocivas, por preocupações e aborrecimentos, não encontram trégua nem alívio para si próprios; como o poderiam? Não apenas isso, mas quando os outros os incitam a encontrá-los, não dão atenção nenhuma ao argumento cuja aceitação os capacitaria a tolerar o presente sem recriminação, a recordar o passado com gratidão e a enfrentar o futuro sem apreensão nem receio, mas com gaia e luminosa esperança.

Plutarco, in 'Do Contentamento'

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Serenidade...


A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos; é uma virtude dos santos e dos cavaleiros, é indestrutível e cresce com a idade e a aproximação da morte. É o segredo da beleza e a verdadeira substância de toda a arte. O poeta que celebra, na dança dos seus versos, as magnificências e os terrores da vida, o músico que lhes dá os tons de duma pura presença, trazem-nos a luz; aumentam a alegria e a clareza sobre a Terra, mesmo se primeiro nos fazem passar por lágrimas e emoções dolorosas. Talvez o poeta cujos versos nos encantam tenha sido um triste solitário, e o músico um sonhador melancólico: isso não impede que as suas obras participem da serenidade dos deuses e das estrelas. O que eles nos dão, não são mais as suas trevas, a sua dor ou o seu medo, é uma gota de luz pura, de eterna serenidade. Mesmo quando povos inteiros, línguas inteiras, procuram explorar as profundezas cósmicas em mitos, cosmogonias, religiões, o último e supremo termo que poderão atingir é essa serenidade.
Hermann Hesse, in 'O Jogo das Contas de Vidro'

sábado, 7 de novembro de 2009

A Independência do Homem

Mal podemos acreditar no filósofo a quem tudo deixa indiferente; não acreditamos na tranquilidade do estóico, não desejamos sequer a impavidez, porque a própria condição humana nos lança na paixão e no medo, e são as lágrimas e o júbilo que nos permitem conhecer o que é. Eis por que somente o impulso ascendente nos liberta das perturbações anímicas e não é pela supressão que nos encontramos.
Temos, pois, que nos arriscar a ser homens e, enquanto homens, fazermos o que pudermos para alcançar a independência conquistada. Sofreremos então sem queixume, desesperar-nos-emos sem nos afundarmos, abalados mas nunca completamente derrubados quando suspensos à íntima independência que em nós se gera. A filosofia, porém, é a escola dessa independência, não a sua posse.

Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica'

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Futuro do Homem...

O homem pode sempre mais e coisa diversa daquilo que se esperaria dele. O homem é inacabado e inacabável e sempre aberto ao futuro. Não há homem total e não o haverá jamais. Por isso há dois modos de pensar o futuro do homem. Posso concebê-lo como um processo natural, análogo àquele que respeita aos objectos, e formular probabilidades. Ou então posso imaginar as situações que vão ocorrer sem saber a resposta que lhes dará o homem, sem saber como, através delas, mas espontaneamente, ele se encontrará a si próprio. No primeiro caso, aguardo um desenrolar necessário que poderia conhecer em princípio, mesmo se não o conheço. No segundo caso, o futuro, longe de ser o desenvolvimento de necessidades causais implicadas pela realidade dada, depende do que será realizado e vivido em liberdade. As inúmeras pequenas acções dos indivíduos, todas as suas livres decisões, todas as coisas que realizam, têm um alcance ilimitado. No primeiro caso submeto-me a uma necessidade contra a qual nada posso. No segundo procuro a fonte original que está na base da liberdade humana. Faço um apelo à vontade. Caminhamos para um futuro que não pode ser conhecido, que, na sua totalidade, não está decidido. A imagem que dele temos é incessantemente corrigida pela experiência. O conhecimento do ser na sua totalidade continua a ser-nos inacessível. O saber que temos da superabundante realidade não mais se completa. A nossa consciência está sempre em marcha. A uma consciência que desejaria ter-se por definitiva opõe-se a realidade do ser que não deixa de se mostrar novo, diferente, através dos fenómenos que surgem incessantemente, forçando assim a nossa consciência a transformar-se indefinidamente. Predizer verdadeiramente o futuro do homem seria já realizá-lo. Aqui predizer significa produzir.
Se conseguissemos certificar-nos do que é a condição humana, com as definidas perspectivas das suas possibilidades infinitas, nunca mais poderemos desesperar definitivamente do homem. Simbólicamente: o homem foi criado por Deus à sua imagem: por muito perdido que ele esteja, tal semelhança não pode desaparecer completamente. (...) É incontestável, em primeiro lugar, que não nos criámos a nós mesmos e que estamos no mundo graças a alguma coisa que não somos nós. Tomamos consciência deste facto quando pensamos simplesmente que seria possível não existirmos. É incontestável, em segundo lugar, que não somos livres graças a nós próprios, mas sim graças ao que, no fundo da nossa liberdade, se nos oferece a nós próprios: ainda que o queiramos, isso não chega para nos tornarmos livres. No auge da liberdade ganhamos consciência do facto de sermos para nós um dom: a nossa liberdade faz-nos viver, mas não podemos nós próprios consegui-la pela força. Essa coisa pouca que não podemos conquistar - nem pela «revolta de Prometeu», nem isolando o nosso «eu» até torná-lo o centro do ser, nem arrancando-nos nós ao pântano pelos próprios cabelos, como Munchhausen -, de onde pode ela vir-nos? E de onde o socorro? Este não se manifesta como um processo do mundo. Não vem do exterior. Porque, sentimo-lo, é no mais profundo de nós que nós nos encontramos quando nos tornamos nós próprios. Em parte alguma a transcendência fala de maneira directa, ninguém a tem diante de si, ela não se deixa captar. Deus não fala senão através da nossa liberdade. A decisão fundamental é aquela de que depende a maneira de apreender conscientemente a nossa condição de homem. Enquanto homem, não nos bastamos nunca, não somos o nosso único fim. Estamos vinculados à transcendência. Ela exalta-nos e, ao mesmo tempo, torna-nos transparentes a nós próprios, dando-nos consciência do pouquinho que somos.
Karl Jaspers, in 'Panorama das Ideias Contemporâneas'

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Precisamos do Outro para Encontrar a Verdade...

Só alcançamos a verdade do nosso pensamento quando incansavelmente nos esforçamos por pensar colocando-nos no lugar de qualquer outro. É preciso conhecer o que é possível ao homem. Se tentamos pensar seriamente aquilo que outrem pensou aumentamos as possibilidades da nossa própria verdade, mesmo que nos recusemos a esse outro pensamento. Só ousando integrar-nos totalmente nele o podemos conhecer. O mais remoto e estranho, o mais excessivo e excecpcional, mesmo o aberrativo, incitam-nos a não passar ao largo da verdade por omissão de algo de original, por cegueira ou por lapso.
Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica'

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Orientar Filosoficamente a Vida...

A ânsia de uma orientação filosófica da vida nasce da obscuridade em que cada um se encontra, do desamparo que sente quando, em carência de amor, fica o vazio, do esquecimento de si quando, devorado pelo afadigamento, súbito acorda assustado e pergunta: que sou eu, que estou descurando, que deverei fazer? O auto-esquecimento é fomentado pelo mundo da técnica. Pautado pelo cronómetro, dividido em trabalhos absorventes ou esgotantes que cada vez menos satisfazem o homem enquanto homem, leva-o ao extremo de se sentir peça imóvel e insubstituivel de um maquinismo de tal modo que, liberto da engrenagem, nada é e não sabe o que há-de fazer de si. E, mal começa a tomar consciência, logo esse colosso o arrasta novamente para a voragem do trabalho inane e da inane distracção das horas de ócio.
Porém, o pendor para o auto-esquecimento é inerente à condição humana. O homem precisa de se arrancar a si próprio para não se perder no mundo e em hábitos, em irreflectidas trivialidades e rotinas fixas. Filosofar é decidirmo-nos a despertar em nós a origem, é reencontrarmo-nos e agir, ajudando-nos a nós próprios com todas as forças. Na verdade a existência é o que palpavelmente está em primeiro lugar: as tarefas materiais que nos submetem às exigências do dia-a-dia. Não se satisfazer com elas, porém, e entender essa diluição nos fins como via para o auto-esquecimento, e, portanto, como negligência e culpa, eis o anelo de uma vida filosóficamente orientada. E, além disso, tomar a sério a experiência do convívio com os homens: a alegria e a ofensa, o êxito e o revés, a obscuridade e a confusão. Orientar filosoficamente a vida não é esquecer, é assimilar, não é desviar-se, é recriar intimamente, não é julgar tudo resolvido, é clarificar. São dois os seus caminhos: a meditação solitária por todos os meios de consciencialização e a comunicação com o semelhante por todos os meios da recíproca compreensão, no convívio da acção, do colóquio ou do silêncio.


Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica'

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Receio do Sofrimento...

Todos os sofrimentos que nos cercam, é-nos necessário sofrê-los igualmente. Todos nós, não temos um corpo, mas um crescimento, e esse conduz-nos através de todas as dores, seja sob que forma for. Do mesmo modo que a criança, através de todos os estádios da vida, se desenvolve até à velhice e até à morte (e cada estádio parece no fundo inacessível ao precedente, quer seja desejado ou receado), do mesmo modo nos desenvolvemos (não menos solidários da humanidade do que de nós próprios) através de todos os sofrimentos deste mundo. Para a justiça não há, nesta ordem de coisas, lugar algum, não mais do que para o receio dos sofrimentos ou para a interpretação do sofrimento como um mérito.
Franz Kafka, in "Meditações"

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cessa de Correr !!!

Se não cessas de correr, marulhando no ar tépido com as tuas mãos como natatórios, olhando furtivamente tudo diante de que passas no meio-sono apressado, acontecer-te-á também um dia deixar passar diante de ti o carro. Se te mantiveres firme, pelo contrário, com o poder do teu olhar fazendo crescer as raízes em profundidade e em comprimento - nada então te poderá eliminar - em virtude não das raízes mas da força do teu olhar que escruta - será então que verás o longínquo imutavelmente obscuro de onde nada pode surgir a não ser precisamente uma vez este carro que rola para ti, que se aproxima, cada vez maior e que, no próprio instante em que entras em tua casa, enche o mundo enquanto mergulhas nele como uma criança no banco acolchoado de uma diligência que corre através da tempestade e da noite.
Franz Kafka, in "Meditações"

domingo, 1 de novembro de 2009

O Individuo Indestrutivel...


Teoricamente, só há uma possibilidade perfeita de felicidade: acreditar no indestrutível em si sem a ele aspirar. O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos, daí esse laço indissolúvel entre os homens, que é sem exemplo.

Franz Kafka, in 'Meditações'

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A Existência Baseada Em Justificações...

Ninguém aqui gera mais do que a sua possibilidade espiritual de viver; pouco importa que dê a aparência de trabalhar para se alimentar, para se vestir, etc.; com cada bocada visível uma invisível lhe é estendida, com cada vestimenta visível uma invisível vestimenta. Está nisso a justificação de cada homem. Parece fundamentar a sua existência com justificações ulteriores, mas essa é apenas a imagem invertida que oferece o espelho da psicologia, de facto erege a sua vida sobre as suas justificações. É verdade que cada homem deve poder justificar a sua vida (ou a sua morte, o que vem dar no mesmo), não pode furtar-se a essa tarefa.
Franz Kafka, in 'Meditações'

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Um Herói não se Declara...

Aquele que se expõe à morte deve estar à altura de incutir à sua época a força da exasperação. Se, pois, vejo um homem até então completamente desconhecido dos seus contemporâneos aparecer afirmando que está pronto a sacrificar a sua vida e a enfrentar a morte, muito tranquilamente então (...) eu demitiria este profeta. Nunca um tal homem chegaria ao ponto de ser condenado à morte pela sua época, ainda que, por outro lado, tivesse realmente a coragem de morrer e a isso estivesse disposto. Ele não conhece o segredo; pensa evidentemente que os seus contemporâneos, os mais fortes, se encarregarão da execução, quando ele deveria ser de tal modo superior ao seu tempo que não o deixasse, permanecendo ele próprio passivo, cumprir sozinho o seu trabalho de tal modo superior que não lho indicasse mas livremente o constrangesse a sair-se bem dele. Os juízes costumam deixar dormir a pena capital quando um infeliz desgostado com a vida deseja a morte, e tal é também a sabedoria desta geração: que prazer teria ele em ter feito perecer este herói!
Soren Kierkegaard, in 'Um Homem Tem o Direito de se Deixar Condenar à Morte pela Verdade?'

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Fidelidade Feminina...

Fala-se muito da fidelidade feminina, mas raras vezes se diz o que convém. Do ponto de vista estritamente estético, ela paira como um fantasma por sobre o espírito do poeta, que vemos atravessar a cena em demanda da sua amada, que é também um fantasma preso à espera do amante - porque quando ele aparece e ela o reconhece, pronto, a estética já não tem mais que fazer. A infedilidade da mulher, que podemos relacionar directamente com a fidelidade precedente, parece relevar essencialmente da ordem moral, visto já que o cíume toca sempre os aspectos de paixão trágica. Há três casos em que o exame é favorável à mulher: dois mostram a fidelidade, e um a infedilidade. A fidelidade feminina será enorme, excederá tudo quanto a gente possa pensar, enquanto a mulher não tiver a certeza de ser verdadeiramente amada: será muito grande, ainda que nos pareça incompreensível, quando o amante lhe perdoar; no terceiro caso temos a infedilidade.
Soren Kierkegaard, in 'O Banquete' (Discurso de Constantino)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Nada Pior que o Mal-Entendido...

Uma bagatela, como se sabe, leva uma vida depreciada e desprezada - depois, vinga-se; porque o mal-entendido, sobretudo quando toma uma forma violenta e má, radica naturalmente numa bagatela; senão, não haveria mal-entendido, mas essencialmente discórdia. O que caracteriza o mal-entendido é o seguinte: aquilo que para um é importante, é insignificante para o outro, mas no sentido de que, no fundo, as duas pessoas estão separadas por uma bagatela; estão desunidas no seu mal-entendido porque não arranjaram tempo para começarem a entender-se. Pois, no fundo de todo o «desacordo real», há um acordo: «o mal-entendido» sem fundamento reside na falta de compreensão prévia sem a qual acordo e desacordo são, um e outro, um mal-entendido. Este pode, pois, desaparecer e transformar-se em desacordo real; porque se duas pessoas estão em desacordo real não há aí um mal-entendido, estão precisamente em desacordo real porque se compreendem mutuamente.
Soren Kierkegaard, in 'Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor'

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

No Amor, Mil Almas, Mil Maneiras Diferentes...

Nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos. Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. E o mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é que a mulher que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece.
Ovídio, in "A Arte de Amar"

domingo, 25 de outubro de 2009

Junta os Dons do Espírito às Vantagens do Corpo...

Para ser amado, sê amável, para o que não bastará a beleza do rosto ou do corpo. Se pretendes conservar a tua amiga e não teres nunca a surpresa de ser abandonado, mesmo que sejas Nireu, amado pelo velho Homero, ou o Hilas de delicada beleza que as Náiades raptaram por meio de um crime, junta os dons do espírito às vantagens do corpo. A beleza é um bem muito frágil, tudo o que se acrescenta aos anos a diminui, murcha com a própria duração. As violetas e os lírios com as suas corolas abertas não florescem sempre; e na rosa, depois de caída, só o espinho permanece. Também tu, belo adolescente, cedo conhecerás cabelos brancos, cedo conhecerás as rugas que sulcam o teu corpo. Forma desde já um espírito que dure e fortalece a beleza; só ele subsiste até à fogueira fúnebre.
Ovídio, in 'A Arte de Amar'

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Centro do Universo...

Se todo o indivíduo pudesse escolher entre o seu próprio aniquilamento e o do resto do mundo, não preciso dizer para que lado, na maioria dos casos, penderia a balança. Conforme essa escolha, cada um faz de si o centro do universo, refere tudo a si mesmo e considera primeiramente tudo o que acontece - por exemplo, as maiores mudanças no destino dos povos - do ponto de vista do seu interesse. Ainda que este seja muito pequeno e remoto, é nele que pensa acima de tudo. Não existe contraste maior do que aquele entre a alta e exclusiva divisão, que cada um faz dentro do seu próprio eu, e a indiferença com a qual, em geral, todos os outros consideram aquele eu, bem como o primeiro faz com o deles.
Chega a ter o seu lado cómico ver os inúmeros indivíduos que, pelo menos no aspecto prático, consideram-se exclusivamente reais e aos outros, de certo modo, como meros fantasmas. [...] O único universo que todos realmente conhecem e do qual têm consciência é aquele que carregam consigo como sua representação e que, portanto, constitui o seu centro. É justamente por isso que cada um é em si mesmo tudo em tudo. Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar" Se todo o indivíduo pudesse escolher entre o seu próprio aniquilamento e o do resto do mundo, não preciso dizer para que lado, na maioria dos casos, penderia a balança. Conforme essa escolha, cada um faz de si o centro do universo, refere tudo a si mesmo e considera primeiramente tudo o que acontece - por exemplo, as maiores mudanças no destino dos povos - do ponto de vista do seu interesse. Ainda que este seja muito pequeno e remoto, é nele que pensa acima de tudo. Não existe contraste maior do que aquele entre a alta e exclusiva divisão, que cada um faz dentro do seu próprio eu, e a indiferença com a qual, em geral, todos os outros consideram aquele eu, bem como o primeiro faz com o deles.
Chega a ter o seu lado cómico ver os inúmeros indivíduos que, pelo menos no aspecto prático, consideram-se exclusivamente reais e aos outros, de certo modo, como meros fantasmas. [...] O único universo que todos realmente conhecem e do qual têm consciência é aquele que carregam consigo como sua representação e que, portanto, constitui o seu centro. É justamente por isso que cada um é em si mesmo tudo em tudo.

Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"

sábado, 17 de outubro de 2009

Ninguém Sabe Coisa Alguma...

Porque nós não sabemos, pois não? Toda a gente sabe. O que faz as coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está subjacente á anarquia da sequência dos acontecimentos, às incertezas, às contrariedades, à desunião, às irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos? Ninguém sabe, professora Roux. «Toda a gente sabe» é a invocação do lugar-comum e o inimigo da banalização da experiência, e o que se torna tão insuportável é a solenidade e a noção da autoridade que as pessoas sentem quando exprimem o lugar-comum. O que nós sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-comum, ninguém sabe coisa nenhuma. Não podemos saber nada. Mesmo as coisas que sabemos, não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso ainda é o que passa por saber.
Philip Roth, in "A Mancha Humana"

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Quem não Ama a Solidão, não Ama a Liberdade...

Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas. Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas acções, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo. Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é. Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogéneos causa um efeito incómodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza. Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em óptima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Nenhum Problema tem Solução...

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida. Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver. Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.
Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'

O Solitário...

As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se profundas no silêncio, ganham significado, transformam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido.
Thomas Mann, in "Morte em Veneza"

sábado, 10 de outubro de 2009

A Escolha Inteligente...

Uma vida bem sucedida depende das escolhas que fizermos. Temos de saber o que é ou não importante para nós. A escolha inteligente implica um sentido realista dos valores e um sentido realista das proporções. Este processo de escolha - de aceitação por um lado e de rejeição pelo outro - começa na infância e continua pela vida fora. Não podemos ter tudo o que ambicionamos. O homem de negócios que procura o sucesso financeiro tem muitas vezes de abandonar os seus interesses de ordem desportiva ou cultural. Os que preferem servir os interesses espirituais, culturais ou políticos da sociedade - sacerdotes, escritores, artistas, militares, homens de estado e funcionários públicos em geral - têm quase sempre de relegar para segundo plano o bem-estar financeiro.
Com uma vida limitada não podemos ser ou fazer tudo. Estamos constantemente a ter de escolher com que e com quem passar o nosso tempo. Cultivar amizades toma tempo. Às vezes temos de recusar encontros e desapontar muitas pessoas para termos tempo de alcançar os nossos fins. Todos os dias temos de escolher entre as coisas que estão à venda. Não podemos ter o mundo inteiro, tal como uma criança não pode comprar todos os rebuçados da doçaria se tiver apenas um tostão. Esta é uma das grandes lições da vida. Temos de escolher na altura própria, e o destino é a seara que cresce da semente da escolha. A fórmula para uma escolha inteligente exige não só um profundo conhecimento de nós próprios como uma afirmação da nossa própria maneira de ser.

Alfred Montapert, in 'A Suprema Filosofia do Homem'

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

As Armadilhas do Passado...


Estudemos as coisas que já não existem. É necessário conhecê-las, ainda que não seja senão para as evitar. As contrafacções do passado tomam nomes falsos e gostam de chamar-se o futuro. Esta alma do outro mundo, o passado, é atreita a falsificar o seu passaporte. Precatemo-nos contra o laço, desconfiemos dela. O passado tem um rosto, que é a superstição, e uma máscara, que é a hipocrisia. Denunciemos-lhe o rosto e arranquemos-lhe a máscara.

Tudo Está ao Nosso Alcance...

A vida traz a cada um a sua tarefa e, seja qual for a ocupação escolhida, álgebra, pintura, arquitectura, poesia, comércio, política — todas estão ao nosso alcance, até mesmo na realização de miraculosos triunfos, tudo na dependência da selecção daquilo para que temos aptidão: comece pelo começo, prossiga na ordem certa, passo a passo. É tão fácil retorcer âncoras de ferro e talhar canhões como entrelaçar palha, tão fácil ferver granito como ferver água, se você fizer tudo na ordem correcta. Onde quer que haja insucesso é porque houve titubeio, houve alguma superstição sobre a sorte, algum passo omitido, que a natureza jamais perdoa. Condições felizes de vida podem ser obtidas nos mesmos termos. A atracção que elas suscitam é a promessa de que estão ao nosso alcance. As nossas preces são profetas. É preciso fidelidade; é preciso adesão firme. Quão respeitável é a vida que se aferra aos seus objectivos! As aspirações juvenis são coisas belas, as suas teorias e planos de vida são legítimos e recomendáveis: mas você será fiel a eles? Nem um homem sequer, receio eu, naquele pátio repleto de gente, ou não mais que um em mil. E, se tentar cobrar deles a traição cometida, e os faz relembrar de suas altas resoluções, eles já não se recordam dos votos que fizeram. [...] A corrida é longa, e o ideal, legítimo, mas os homens são inconstantes e incertos. O herói é aquele imovelmente centrado. A principal diferença entre as pessoas parece ser a de que um homem é capaz de se sujeitar a obrigações das quais podemos depender — é obrigável; e outro não é. Como não tem a lei dentro de si, não há nada que o prenda.
Ralph Waldo Emerson, in "Considerations by the Way"

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Religião e Superstição...

É tão grande a fraqueza do género humano, tamanha a sua perversidade, que, sem dúvida, lhe vale mais estar subjugado por todas as superstições possíveis - desde que não tenham carácter assassino - do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidade de um freio e, por ridículo que fosse sacrificar aos faunos, aos silvanos ou às náiades, era mais razoável e mais útil adorar essas imagens fantásticas da Divindade do que entregar-se ao ateísmo. Um ateu que fosse razoador, violento e poderoso, seria um flagelo tão funesto como um supersticioso sanguinário. Quando os homens não dispõem de sãs noções acerca da Divindade, as ideias falsas suprem-lhes a falta, tal como nos tempos de desgraça se fazem negócios com moeda falsa quando falta a moeda boa. O pagão, se cometia um crime, temia ser punido pelos seus falsos deuses; o malabar teme ser punido pelo seu pagode. Em todo o lado onde há uma sociedade estabelecida, é necessária uma religião. As leis exercem vigilância sobre os crimes conhecidos, a religião exerce-a sobre os crimes secretos. Mas, a partir do momento em que os homens chegam a abraçar uma religião pura e santa, a superstição torna-se não apenas inútil, mas muito perigosa. Não se deve tentar alimentar com bolotas aqueles que Deus se dignou alimentar com pão. A superstição está para a religião como a astrologia está para a astronomia, a filha louca de uma mãe sábia. Essas duas filhas subjugaram durante muito tempo a Terra inteira.
Voltaire, in 'Tratado Sobre a Tolerância'