Eu não desviava os olhos de minha mãe, sabia que, quando estivessem à mesa, não me seria permitido ficar até ao fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, a mamã não me deixaria beijá-la várias vezes diante dos outros, como se fosse no meu quarto. (...) antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: «O pequeno parece cansado; deveria ir deitar-se. E depois, jantamos tarde hoje.» E meu pai,(...) disse: «Sim. Anda, vai deitar-te.» Eu quis beijar a mamã; nesse instante ouviu-se a sineta do jantar. «Não, não, deixa a tua mãe em paz, vocês já se despediram bastante, essas demonstrações são ridículas. Anda, sobe!» E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau «contra o coração», subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe havia dado, com um beijo, licença de me acompanhar. (...) Já no meu quarto, tive de (...) cerrar os postigos, cavar o meu próprio túmulo enquanto virava as cobertas, vestir o sudário da minha camisa de dormir. Mas antes de sepultar-me no leito de ferro (...), veio-me um impulso de revolta e resolvi tentar um ardil de condenado. Escrevi a minha mãe, suplicando-lhe que subisse, para um assunto grave que eu não podia dizer-lhe na minha carta. Todo o meu receio era que Francisca, a cozinheira (...), se recusasse a levar o meu bilhete. Suspeitava que, para ela, dar um recado a minha mãe quando havia gente de fora pareceria uma coisa tão impossível como, para o porteiro de um teatro, entregar uma carta a um actor que estivesse em cena. Possuía ela, para julgar os recados que devia ou não devia fazer, um código imperioso, abundante, subtil e intransigente, com distinções imperceptíveis ou ociosas (o que lhe dava a aparência dessas leis antigas que, a par de prescrições ferozes como a chacina de crianças de peito, proíbem, com exagerada delicadeza, que se cozinhe o cabrito no leite de sua própria mãe (...) ).
Esse código, a julgar pela repentina obstinação com que ela se negava a desempenhar certas incumbências que lhe dávamos, parecia ter previsto complexidades sociais e refinamentos mundanos de tal natureza que nada, no ambiente de Francisca e na sua vida de criada de aldeia, lhe poderia ter sugerido; e éramos obrigados a acreditar que havia nela um passado francês muito antigo, nobre e mal compreendido, como nessas cidades manufactureiras onde velhos palácios testemunham que houve outrora uma vida de corte, o onde os operários de uma fábrica de produtos químicos trabalham no meio de delicadas esculturas que representam o milagre de S. Teófilo ou os quatro filhos de Aymon. Naquele meu caso particular, o artigo de código conforme o qual era muito pouco provável que Francisca, salvo em caso de incêndio, fosse perturbar a mamã na presença do Sr. Swann, por causa de um personagem tão insignificante quanto eu, exprimia simplesmente a reverência que ela dedicava não somente aos pais(...), mas também ao estranho a quem se dá hospitalidade, reverência que talvez me impressionasse num livro, mas que sempre me irritava em sua boca, em face do tom grave e enternecido que ela tomava para aludir a isso, e muito mais naquela noite em que o carácter sagrado que atribuía à ceia concorreria para que se negasse a perturbar a cerimónia. Mas, para conseguir uma probabilidade em meu favor, não hesitei em mentir, dizendo que não era a mim que havia ocorrido escrever à mamã mas que fora a mamã que me recomendara, ao separarmo-nos, que não me esquecesse de lhe mandar uma resposta relativa a certo objecto que me pedira para procurar; e que ela decerto ficaria muito incomodada se não lhe entregassem o meu bilhete. Penso que Francisca não me acreditou, (...) contemplou durante cinco minutos o sobrescrito, como se o exame do papel e o aspecto da letra fossem informá-la da natureza do conteúdo (...) Depois saiu com um ar resignado que parecia significar: «Que desgraça para os pais terem um filho assim!»
Esse código, a julgar pela repentina obstinação com que ela se negava a desempenhar certas incumbências que lhe dávamos, parecia ter previsto complexidades sociais e refinamentos mundanos de tal natureza que nada, no ambiente de Francisca e na sua vida de criada de aldeia, lhe poderia ter sugerido; e éramos obrigados a acreditar que havia nela um passado francês muito antigo, nobre e mal compreendido, como nessas cidades manufactureiras onde velhos palácios testemunham que houve outrora uma vida de corte, o onde os operários de uma fábrica de produtos químicos trabalham no meio de delicadas esculturas que representam o milagre de S. Teófilo ou os quatro filhos de Aymon. Naquele meu caso particular, o artigo de código conforme o qual era muito pouco provável que Francisca, salvo em caso de incêndio, fosse perturbar a mamã na presença do Sr. Swann, por causa de um personagem tão insignificante quanto eu, exprimia simplesmente a reverência que ela dedicava não somente aos pais(...), mas também ao estranho a quem se dá hospitalidade, reverência que talvez me impressionasse num livro, mas que sempre me irritava em sua boca, em face do tom grave e enternecido que ela tomava para aludir a isso, e muito mais naquela noite em que o carácter sagrado que atribuía à ceia concorreria para que se negasse a perturbar a cerimónia. Mas, para conseguir uma probabilidade em meu favor, não hesitei em mentir, dizendo que não era a mim que havia ocorrido escrever à mamã mas que fora a mamã que me recomendara, ao separarmo-nos, que não me esquecesse de lhe mandar uma resposta relativa a certo objecto que me pedira para procurar; e que ela decerto ficaria muito incomodada se não lhe entregassem o meu bilhete. Penso que Francisca não me acreditou, (...) contemplou durante cinco minutos o sobrescrito, como se o exame do papel e o aspecto da letra fossem informá-la da natureza do conteúdo (...) Depois saiu com um ar resignado que parecia significar: «Que desgraça para os pais terem um filho assim!»
Marcel Proust, in "No Caminho de Swann"
Sem comentários:
Enviar um comentário