
Esse código, a julgar pela repentina obstinação com que ela se negava a desempenhar certas incumbências que lhe dávamos, parecia ter previsto complexidades sociais e refinamentos mundanos de tal natureza que nada, no ambiente de Francisca e na sua vida de criada de aldeia, lhe poderia ter sugerido; e éramos obrigados a acreditar que havia nela um passado francês muito antigo, nobre e mal compreendido, como nessas cidades manufactureiras onde velhos palácios testemunham que houve outrora uma vida de corte, o onde os operários de uma fábrica de produtos químicos trabalham no meio de delicadas esculturas que representam o milagre de S. Teófilo ou os quatro filhos de Aymon. Naquele meu caso particular, o artigo de código conforme o qual era muito pouco provável que Francisca, salvo em caso de incêndio, fosse perturbar a mamã na presença do Sr. Swann, por causa de um personagem tão insignificante quanto eu, exprimia simplesmente a reverência que ela dedicava não somente aos pais(...), mas também ao estranho a quem se dá hospitalidade, reverência que talvez me impressionasse num livro, mas que sempre me irritava em sua boca, em face do tom grave e enternecido que ela tomava para aludir a isso, e muito mais naquela noite em que o carácter sagrado que atribuía à ceia concorreria para que se negasse a perturbar a cerimónia. Mas, para conseguir uma probabilidade em meu favor, não hesitei em mentir, dizendo que não era a mim que havia ocorrido escrever à mamã mas que fora a mamã que me recomendara, ao separarmo-nos, que não me esquecesse de lhe mandar uma resposta relativa a certo objecto que me pedira para procurar; e que ela decerto ficaria muito incomodada se não lhe entregassem o meu bilhete. Penso que Francisca não me acreditou, (...) contemplou durante cinco minutos o sobrescrito, como se o exame do papel e o aspecto da letra fossem informá-la da natureza do conteúdo (...) Depois saiu com um ar resignado que parecia significar: «Que desgraça para os pais terem um filho assim!»
Marcel Proust, in "No Caminho de Swann"
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