quarta-feira, 17 de março de 2010

Palavras com Poucas Ideias...



Os homens tomam as palavras como sendo as marcas regulares e constantes de noções aceites, quando na verdade não são mais que sinais voluntários e instáveis das suas próprias idéias. [... ] Esse abuso, que leva a confiar cegamente nas palavras, não foi em nenhum lugar tão disseminado, nem ocasionou tantos efeitos maléficos, como entre os homens de letras. A multiplicação e obstinação das disputas que têm devastado o mundo intelectual deve-se tão-só a esse mau uso das palavras. Pois, ainda que em geral se acredite existir grande diversidade de opiniões nos volumes e variedade das controvérsias que agitam o mundo, o máximo que posso constatar é que, ao discutirem entre si, os doutos em contenda nas diferentes facções falam línguas distintas.

John Locke, in 'Ensaio Sobre o Entendimento Humano'

terça-feira, 16 de março de 2010

O Gosto Pela Contemplação...

O poder interior do homem pode-se comparar ao de um rio que, impedido por um dique, forme uma bacia artificial dando assim origem a uma fonte de energia. Mas há séculos que este dique tem uma falha, a bacia está quase vazia, a energia pouco menos que gasta e todas as regiões em volta estão na escuridão. Deve-se portanto reforçar o dique e permitir que o nível da água suba. Por outras palavras, para encontrar uma ideia do homem, isto é, uma fonte de verdadeira energia, necessita-se que os homens reencontrem o gosto pela contemplação. A contemplação é o dique que alimenta de água a bacia. Ela permite aos homens acumular de novo a energia de que a acção os privou. ~
Alberto Moravia, in "O Homem Como Fim"

segunda-feira, 15 de março de 2010

Pensamento do Dia...

" O pensamento, único tesouro que Deus põe fora do alcance de todo o poder e guarda como um elo secreto entre os infelizes e Ele próprio."

Crueldade e Sofrimento

A crueldade é constitutiva do universo, é o preço a pagar pela grande solidariedade da biosfera, é ineliminável da vida humana. Nascemos na crueldade do mundo e da vida, a que acrescentámos a crueldade do ser humano e a crueldade da sociedade humana. Os recém-nascidos nascem com gritos de dor. Os animais dotados de sistemas nervosos sofrem, talvez os vegetais também, mas foram os humanos que adquiriram as maiores aptidões para o sofrimento ao adquirirem as maiores aptidões para a fruição. A crueldade do mundo é sentida mais vivamente e mais violentamente pelas criaturas de carne, alma e espírito, que podem sofrer ao mesmo tempo com o sofrimento carnal, com o sofrimento da alma e com o sofrimento do espírito, e que, pelo espírito, podem conceber a crueldade do mundo e horrorizar-se com ela.
A crueldade entre homens, indivíduos, grupos, etnias, religiões, raças é aterradora. O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. O ódio desencadeia-se por um pequeno nada, por um esquecimento, pela sorte de outrem, por um favor que se julga perdido. O ódio abstracto por uma ideia ou uma religião transforma-se em ódio concreto por um indivíduo ou um grupo; o ódio demente desencadeia-se por um erro de percepção ou de interpretação. O egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção agravam por todo o lado e sem tréguas a crueldade do mundo humano. E no subsolo das sociedades civilizadas torturam-se animais para o matadouro ou a experimentação. Por saturação, o excesso de crueldade alimenta a indiferença e a desatenção, e de resto ninguém poderia suportar a vida se não conservasse em si um calo de indiferença.

Edgar Morin, in 'Os Meus Demónios'

domingo, 14 de março de 2010

Pensamento do Dia...

"... Pensar é fácil. Agir é difícil. Agir conforme o que pensamos, isso ainda o é mais. "

Singularidade(s)...

Quem sou eu? A minha singularidade dissolve-se quando a examino e, por fim, fico convencido de que a minha singularidade vem de uma ausência de singularidade. Tenho mesmo em mim algo de mimético que me impele a ser como os outros. Em Itália sinto-me italiano e gostaria que os italianos me sentissem como participante na sua italianidade. Outro dia, ao falar a um auditório da Champanha senti-me champanhizado. Ah sim, gostaria de ser como eles. Adoro ser integrado e, contudo, não sou inteiramente de uns e dos outros. Poderia ser de todo o lado, mas nem por isso me sinto de alguma parte, estou enraizado assim.
Não é o exercício de um talento singular nem a posse de uma admirável verdade que me distinguem. Se me distingo é pelo uso não inibido ou cristalizado de uma máquina cerebral comum e pela minha preocupação permanente em obedecer às regras primeiras desta máquina cognitiva: ligar todo o conhecimento separado, contextualizá-lo, situar todas as verdades parciais no conjunto de que fazem parte.

Edgar Morin, in 'Os Meus Demónios'

sábado, 13 de março de 2010

Pensamento do Dia...

"... Os meus pensamentos são a minha perdição."

O Intelectual...

Que é um intelectual? Quando é que uma pessoa se torna intelectual? Quer se seja escritor, universitário, cientista, artista ou advogado, só se passa a ser intelectual, no meu sentido, quando se trata, por meio de ensaio, de texto de revista, de artigo de jornal, de forma especializada e para além do campo profissional estrito, dos problemas humanos, morais, filosóficos e políticos. É então que o escritor, o filósofo, o cientista se auto-instituem intelectuais.
O termo intelectual tem um significado missionário, divulgador, eventualmente militante. Assim, a qualidade de intelectual não é determinada pela pertença profissional à intelligentsia, antes vem do uso ou da superação da profissão, nas e pelas ideias. Assim Sartre é um intelectual quando escreve L'Existencialisme Est un Humanisme e anima a revista Les Temps Modernes. Camus é um intelectual quando escreve L'Homme Revolté e faz editoriais em Combat. Aron é um intelectual quando participa no comité pela liberdade da cultura e publica as suas análises no Le Figaro. Na frente dos intelectuais há a raça bastarda dos escritores/escreventes (como mais ou menos dizia Barthes, o escritor escreve para a escrita, o escrevente escreve para as ideias). E o seu meio de expressão mais adequado é o ensaio, género híbrido entre a filosofia, a literatura o jornalismo e a sociologia.
Edgar Morin, in 'Os Meus Demónios'

sexta-feira, 12 de março de 2010

Pensamento do Dia...

"...A loucura é uma força da natureza para o bem ou para o mal, ao passo que a estupidez é uma debilidade da natureza sem contrapartidas."

A História é Sempre Fabricada...

A história não está ligada ao homem, nem a qualquer objecto em particular. Consiste inteiramente no seu método; a experiência comprova que ele é indispensável para inventariar a integralidade dos elementos de uma estrutura qualquer, humana ou não humana. Longe portanto de a pesquisa da inteligibilidade resultar na história como o seu ponto de chegada, é a história que serve de ponto de partida para toda a busca de inteligibilidade. Assim como se diz de certas carreiras, a história leva a tudo, mas contanto que se saia dela.

Claude Lévi-Strauss, in 'O Pensamento Selvagem'

quinta-feira, 11 de março de 2010

O Limite do Conhecimento...

Não há conhecimento «espelho» do mundo objectivo. O conhecimento é sempre tradução e construção. Resulta daí que todas as observações e todas as concepções devem incluir o conhecimento do observador-conceptualizador. Não ao conhecimento sem autoconhecimento. Todo o conhecimento supõe ao mesmo tempo separação e comunicação. Assim, as possibilidades e os limites do conhecimento relevam do mesmo princípio: o que permite o nosso conhecimento limita o nosso conhecimento, e o que limita o nosso conhecimento permite o nosso conhecimento. O conhecimento do conhecimento permite reconhecer as origens da incerteza do conhecimento e os limites da lógica dedutiva-identitária. O aparecimento de contradições e de antinomias num desenvolvimento racional assinala-nos os estratos profundos do real.
Edgar Morin, in 'Os Meus Demónios'

quarta-feira, 10 de março de 2010

A Liberdade não Existe sem Coerção...

Que não haja oposição entre a coerção e a liberdade; que, ao contrário, elas se auxiliem - toda a liberdade exerce-se para contornar ou superar uma coerção, e toda a coerção apresenta fissuras ou pontos de menor resistência que são incitações à criação -, nada, sem dúvida, consegue dissipar melhor a ilusão contemporânea de que a liberdade não suporta entraves e de que a educação, a vida social, a arte requerem para desabrochar um acto de fé na omnipotência da espontaneidade: ilusão que certamente não é a causa, mas na qual é possível ver um aspecto significativo da crise que o Ocidente atravessa hoje.
Claude Lévi-Strauss, in 'O Olhar Distante'

terça-feira, 9 de março de 2010

Diversidade Condicionada...

Se, como escrevi em 'Raça e História', existe entre as sociedades humanas um certo óptimo de diversidade além do qual elas não conseguiram prosseguir, mas abaixo do qual tampouco podem descer sem perigo, deve-se reconhecer que essa diversidade resulta em grande parte do desejo de cada cultura de se opor às que a cercam, de distinguir-se delas, em suma, de serem elas mesmas; não se ignoram, imitam-se ocasionalmente, mas, para não perecerem, é necessário que, sob outros aspectos, persista entre elas uma certa impermeabilidade.
Claude Lévi-Strauss, in 'O Olhar Distante'

segunda-feira, 8 de março de 2010

De Duas Maneiras Cega a Fortuna...

No golfo de uma privança, nunca o perigo é mais certo, que quando a fortuna é mais próspera. De duas maneiras cega a fortuna, porque cega como luz e cega como fouce; com uma mão abraça, e com outra corta; com a que abraça introduz a cegueira, e com a que corta mostra o desengano. Consiste a prudência em que se temam os resplendores da luz, para que se não cegue aos rigores do golpe. Não faz mal à embarcação o penedo que sobressai por cima da água; porque para evitar o perigo sabe o piloto desviar a nau, por ver manifesto o perigo. Nos penedos que as águas escondem, aí naufraga sempre o baixel; porque cobriu com capa de cristal uma ruína de penhasco, e os que, navegando pelo mar, caminham com os olhos nas ondas, facilmente se esvaem, e quanto maior é na cabeça o esvaecimento, vem a ser mais no coração a fraqueza. Não sabe o que navega quanto tem vencido de distância, se do mesmo mar não tira os olhos, e só fazendo balizas na terra sabe o quanto no mar caminham. É um golfo grande o da privança, e a maior prudência consiste em que se divirtam de alguma vez os olhos, e que façam balizas em terra firme, que é a verdade.
Padre António Vieira, in "As Sete Propriedades da Alma"

domingo, 7 de março de 2010

Muito Tempo Há que a Mentira se Tem Posto em Pés de Verdade...

Muito tempo há que a mentira se tem posto em pés de verdade, ficando a verdade sem pés e com dobradas forças a mentira; e é força que, sustentando-se em pés alheios, ande no mundo a mentira muito de cavalo; e se houve filósofo que com uma tocha numa mão buscava na luz do meio-dia um sábio, hoje, por mais que se multipliquem luzes às do Sol, não se descobrirá um afecto verdadeiro. Buscava-se então a ciência com uma vela, hoje pode-se buscar a verdade com a candeia na mão, que apenas se acha nos últimos paroxismos da vida.
Padre António Vieira, in "As Sete Propriedades da Alma"

sábado, 6 de março de 2010

Simplicidade Extrema...

Põe de lado os estudos e não conhecerás o sofrimento. Põe de lado a erudição e afasta a sabedoria e o povo será cem vezes mais beneficiado. Põe de lado a benevolência e afasta a rectidão e o povo te pagará com dever filial e amor fraternal. Põe de lado o artifício e afasta o lucro e não haverá mais bandoleiros e ladrões. Mantém-te na simplicidade, restringe o egoísmo e refreia os desejos.
Lao-Tse, in 'Tau Te King'

quinta-feira, 4 de março de 2010

A Maior Parte do que Sabemos é a Menor do que Ignoramos...

A maior parte do que sabemos, é a menor do que ignoramos. Não se achou varão tão perfeito no Mundo, que conhecesse o que tinha de sábio, senão sabendo o que lhe faltava para perfeito. Não se viu ninguém tanto nos últimos remates da perfeição, em quem não bruxoleassem sempre alguns desaires de humano. (...) Não necessitando de nada os grandes, só de verdades necessitam; porque, como custam caro, todo o cabedal da fortuna é preço limitado para elas; por isso nos grandes são mais avultados os erros, porque erram com grandeza e ignoram com presunção. Mais gravemente enferma o que logra melhor disposição, que o que nunca deixou de ter achaques: e a razão é porque a enfermidade que pôde vencer disposição tão boa, teve muito de poderosa; ignorância a que não alumiou o discurso mais desperto, tirou as esperanças ao remédio.
Padre António Vieira, in "As Sete Propriedades da Alma"

A Ociosidade...

Assim como vemos as terras em repouso, se nédias e férteis, dar origem à proliferação de cem mil espécies de ervas selvagens e inúteis, sendo necessário, para as manter cultiváveis, domá-las e destiná-las a certas sementes por forma a que delas tiremos proveito; e assim como vemos as mulheres, que por si sós produzem informes amontoados e pedaços de carne, terem, para proporcionar uma boa e natural geração, de ser fecundadas por outra semente, assim vemos que se passa o mesmo com os nossos espíritos. Se não os ocuparmos com algum objecto que os freie e constranja, lançar-se-ão eles, desregrados, a percorrer à toa os campos bravios da imaginação: Tal como a água que tremula em vasilhas de bronze reflecte a luz do sol ou a imagem radiante da lua, cintilações voando pelos ares e atingindo os artesoados tectos - Virgílio, Eneida E não há loucura ou desvario que eles não produzam em tal agitação: Inventam irreais aparições como nos sonhos dos doentes - Horácio, Ars Poetica A alma que não tem um ponto de mira perde-se, pois, como sói dizer-se, é não estar em parte nenhuma em todo o lado estar.
Michel de Montaigne, in "Ensaios"

quarta-feira, 3 de março de 2010

Cifrar a Vontade...

Leiga seria a arte se, ditando o recato aos limites da capacidade, não procurasse dissimular os ímpetos do afecto. Tão acreditada está esta parte da subtileza, que sobre ela ergueram Tibério (Imperador de Roma) e Luís (Luís XI de França, cognome 'O Prudente') toda a sua máquina e política. Se todo o excesso em segredo o é também em torrente, sacramentar uma vontade será soberania. São os achaques da vontade desmaios da reputação e, logo que se declaram, esta vulgarmente morre. O primeiro esforço basta para violentá-los, o segundo para dissimulá-los. Se aquele tem mais de valoroso, este tem mais de astuto. Quem a eles se rende, baixa de homem a bruto; quem os repudia conserva, pelo menos nas aparências, o crédito. Acusa torrentosa eminência o penetrar-se toda a vontade alheia, e conclui superioridade saber selar-se a própria. Descobrir-se um afecto a um varão é o mesmo que abrir um postigo na fortaleza da torrente, pois é por ali que maquinam politicamente os astutos, e na maior parte das vezes o assaltam com sucesso. Sabidos os afectos, sabem-se as entradas e as saídas da vontade, tornando-se senhores dela a todas as horas.
Baltasar Gracián y Morales, in "O Herói"

terça-feira, 2 de março de 2010

O Falso Mérito do Cínico...

O cínico, parasita da civilização, vive de negá-la, simplesmente porque está convencido de que esta não lhe faltará. Que faria o cínico num povoado selvagem onde todos, naturalmente e a sério, fizessem o que ele, de farsa, considera como o seu papel pessoal? O que é um fascista se não fala mal da liberdade e um surrealista se não abjura a arte?
Ortega y Gasset, in "A Rebelião das Massas"