
Eliminemos-lhe a estranheza, trilhemo-lo, acostumemo-nos a ele. Não pensemos em nenhuma outra coisa com tanta frequência quanto na morte. A todo o instante representemo-la à nossa imaginação, e sob todos os aspectos. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, ruminemos imediatamente: «Pois bem, quando será a morte mesma?» E diante disso enrijeçamo-nos e fortifiquemo-nos. Pelo meio às festas e à alegria, conservemos esse refrão da lembrança da nossa condição, e não nos deixemos arrastar ao prazer tão intensamente que por vezes não volte a passar-nos na lembrança sob quantas formas o nosso regozijo está na mira da morte, e com quantos ataques ela o ameaça. Assim faziam os egípcios, que, pelo meio dos seus festins e no melhor divertimento, mandavam trazer o esqueleto de um corpo de homem morto, para servir de advertência aos convivas, Imagina que cada dia que brilha é para ti o dia supremo; receberás com reconhecimento a hora com que não havias contado (Horácio). É incerto onde a morte nos espera; esperemo-la em toda a parte. A premeditação da morte é premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e imposição. Na vida não existe mal para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal.
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'
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