quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Felicidade Solitária

A solidão concede ao homem intelectualmente superior uma vantagem dupla: primeiro, a de estar só consigo mesmo; segundo, a de não estar com os outros. Esta última será altamente apreciada se pensarmos em quanta coerção, quantos estragos e até mesmo quanto perigo toda a convivência social traz consigo. «Todo o nosso mal provém de não podermos estar a sós», diz La Bruyère. A sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, pois põe-nos em contacto com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. O insociável é alguém que não precisa deles.
Desse modo, ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já é uma grande felicidade, porque quase todo o sofrimento provém justamente da sociedade, e a tranquilidade espiritual, que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial da nossa felicidade, é ameaçada por ela e, portanto, não pode subsistir sem uma dose significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciavam a toda a posse para usufruir a felicidade conferida pela tranquilidade intelectual. Quem renunciar à sociedade com a mesma intenção terá escolhido o mais sábio dos caminhos.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ninguém é Feliz quando Treme pela sua Felicidade...

Ninguém é feliz quando treme pela sua felicidade. Não se apoia em bases sólidas quem tira a sua satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o bem-estar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce dentro de nós é permanente e constante, e vai sempre crescendo até ao nosso último momento; todos os demais bens ante os quais se extasia o vulgo são bens efémeros. "E então? Quer isso dizer que são inúteis e não podem dar satisfação?" É evidente que não, mas apenas se tais bens estiverem na nossa dependência, e não nós na dependência deles. Tudo quanto cai sob a alçada da fortuna pode ser proveitoso e agradável na condição de o seu beneficiário ser senhor de si próprio em vez de ser servo das suas propriedades. É um erro pensar-se, Lucílio, que a fortuna nos concede o que quer que seja de bom ou de mau; ela apenas dá a matéria com que se faz o bom e o mau, dá-nos o material de coisas que, nas nossas mãos, se transformam em boas ou más.
O nosso espírito é mais poderoso do que toda a espécie de fortuna, ele é quem conduz a nossa vida no bom ou no mau sentido, é nele que está a causa de nós sermos felizes ou desgraçados. Um homem mau faz tudo redundar em mal, mesmo quando aparentemente as coisas se apresentavam excelentes; um espírito justo e íntegro sabe corrigir os erros da fortuna, sabe, pela sua mesma sabedoria, temperar as ocorrências adversas e difíceis de suportar; um tal espírito é capaz de acolher a felicidade com gratidão e temperança, de enfrentar a adversidade com firmeza e coragem. Imaginemos um homem experiente, que não faz nada sem ter analisado totalmente a questão, que nunca tenta nada que esteja acima das suas forças: tal homem nunca alcançará aquele supremo e completo bem acima de todas as contingências se não se sentir seguro em face da insegurança. Se observares os outros (já que costumamos ser melhores juízes em causa alheia), ou se te analisares a ti próprio sem parcialidade, serás forçado a admitir que aqueles bens que tens por desejáveis e preciosos te serão inúteis se previamente não te preparares para a falibilidade do acaso e do condicionalismo que o acompanha.

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Escolher a Felicidade...

Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.
Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

sábado, 26 de setembro de 2009

A Felicidade é Modesta e não Ambiciosa

Aqui tens o que posso dizer-te constantemente, a matéria que poderei estar sempre a debater, pois ambos vemos à nossa roda inúmeros milhares de pessoas inquietas que, a fim de obterem algo de altamente nocivo, andam com perseverança a praticar o mal, sempre à procura de coisas que logo a seguir deixam de lhes interessar, ou mesmo as enchem de repulsa! Já viste alguém contentar-se com uma coisa que, antes de a obter, lhe parecia mais que suficiente? A felicidade, ao contrário da opinião corrente, não é ambiciosa, mas sim modesta, e por isso mesmo nunca sacia ninguém. Tu pensas que aquilo que satisfaz o vulgo é elevado porque ainda estás longe da perfeição estóica; para quem a alcançou, tudo isso é absolutamente rasteiro! Minto: para quem começou a subir até esse nível, pois o ponto que tu pensas ser já o mais alto não passa de um degrau. Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade. Enganada pela opinião vulgar, procura como se fossem bens certas coisas que, depois de muito penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas sente admiração por coisas que só ao fim de algum tempo se revelam ilusórias; e assim é que o vulgo toma por bom o que apenas parece grande.
Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Felicidade e Virtude...

Como, ao que parece, há muitos fins e podemos buscar alguns em vista de outros: por exemplo, a riqueza, a música, a arte da flauta e, em geral, todos aqueles fins que podem denominar-se instrumentos, é evidente que nenhum desses fins é perfeito e definitivo por si mesmo. Mas o sumo bem deve ser coisa perfeita e definitiva. Por conseguinte, se existe uma só e única coisa que seja definitiva e perfeita, ela é precisamente o bem que procuramos; e se há muitas coisas deste género, a mais definitiva entre elas será o bem. Mas, em nosso entender, o bem que apenas deve buscar-se por si mesmo é mais definitivo que aquele que se procura em vista de outro bem; e o bem que não deve buscar-se nunca com vista noutro bem é mais definitivo que os bens que se buscam ao mesmo tempo por si mesmos e por causa desse bem superior; numa palavra, o perfeito, o definitivo, o completo, é o que é eternamente apetecível em si, e que nunca o é em vista de um objecto distinto dele. Eis aí precisamente o carácter que parece ter a felicidade; buscamo-la por ela e só por ela, e nunca com mira em outra coisa. Pelo contrário, quando buscamos as honras, o prazer, a ciência, a virtude, sob qualquer forma que seja, desejamos, indubitavelmente, todas essas vantagens por si mesmas; pois que, independentemente de toda outra consequência, desejaríamos cada uma delas; todavia, desejamo-las também com mira na felicidade, porque cremos que todas essas diversas vantagens no-la podem assegurar; enquanto ninguém pode desejar a felicidade, nem com mira nestas vantagens, nem, de maneira geral, com vista em algo, seja o que for, distinto da felicidade mesma.
(...) Todavia, ainda convindo connosco em que a felicidade é, sem contradita, o maior dos bens, o bem supremo, talvez haja quem deseje conhecer melhor a sua natureza. O meio mais seguro de alcançar esta completa noção é saber qual é a obra própria do homem. (...) Viver é uma função comum ao homem e às plantas, e aqui apenas se busca o que é exclusivamente especial ao homem; é por isso necessário pôr de lado a vida de nutrição e de desenvolvimento. Em seguida vem a vida da sensibilidade, mas esta, por sua vez, mostra-se igualmente comum a todos os seres - o cavalo, o boi, e em geral a todos os animais, tal como ao homem. Resta, portanto, a vida activa do ser dotado de razão. Mas neste ser deve distinguir-se a parte que não possui directamente a razão e se serve dela para pensar. Além disso, como esta mesma faculdade da razão se pode compreender num duplo sentido, devemos não esquecer que se trata aqui, sobretudo, da faculdade em acção, a qual merece mais particularmente o nome que a ambas convém. E assim o próprio do homem será o acto da alma em conformidade com a razão, ou, pelo menos, o acto da alma que não pode realizar-se sem a razão. (...) Mas o bem, a perfeição para cada coisa, varia segundo a virtude especial dessa coisa. Por conseguinte, o bem próprio do homem é a actividade da alma dirigida pela virtude; e, como há muitas virtudes, será a actividade dirigida pela mais alta e a mais perfeita de todas. Acrescente-se também que estas condições devem ser realizadas durante uma vida inteira e completa, porque uma só andorinha não faz a Primavera, nem um só dia formoso; e não pode tão-pouco dizer-se que um só dia de felicidade, nem mesmo uma temporada, bastam para fazer um homem ditoso e afortunado.
Aristóteles, in'Ética a Nicómaco'

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A Felicidade e as Idades da Vida...


O que torna infeliz a primeira metade da vida, que apresenta tantas vantagens em relação à segunda, é a busca da felicidade, com base no firme pressuposto de que esta deva ser encontrável na vida: o resultado são esperanças e insatisfações continuamente frustradas. Visualizamos imagens enganosas de uma felicidade sonhada e indeterminada, entre figuras escolhidas por capricho, e procuramos em vão o seu arquétipo. Na segunda metade da vida, a preocupação com a infelicidade toma o lugar da aspiração sempre insatisfeita à felicidade; no entanto, encontrar um remédio para tal problema é objectivamente possível. De facto, a essa altura já estamos finalmente curados do pressuposto há pouco mencionado e buscamos apenas tranquilidade e a maior ausência de dor possível, o que pode ocasionar um estado consideravelmente mais satisfatório do que o primeiro, visto que ele deseja algo atingível, e que prevalece sobre as privações que caracterizam a segunda metade da vida.

Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Ser Feliz"

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Sabedoria de Vida é Usufruir o Presente...

Não permitir a manifestação de grande júbilo ou grande lamento em relação a qualquer acontecimento, uma vez que a mutabilidade de todas as coisas pode transformá-lo completamente de um instante para o outro; em vez disso, usufruir sempre o presente da maneira mais serena possível: isso é sabedoria de vida. Em geral, porém, fazemos o contrário: planos e preocupações com o futuro ou também a saudade do passado ocupam-nos de modo tão contínuo e duradouro, que o presente quase sempre perde a sua importância e é negligenciado; no entanto, somento o presente é seguro, enquanto o futuro e mesmo o passado quase sempre são diferentes daquilo que pensamos. Sendo assim, iludimo-nos uma vida inteira.
Ora, para o eudemonismo, tudo isso é bastante positivo, mas uma filosofia mais séria faz com que justamente a busca do passado seja sempre inútil, e a preocupação com o futuro o seja com frequência, de modo que somente o presente constitui o cenário da nossa felicidade, mesmo se a qualquer momento se vier a transformar-se em passado e, então, tornar-se tão indiferente como se nunca tivesse existido. Onde fica, portanto, o espaço para a nossa felicidade?

Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Ser Feliz"

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Força do Presente...

Fosse a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que ninguém perde outra vida que aquela que lhe tocou viver e que só se vive aquela que se perde. Assim a mais longa e a mais curta vida se equivalem. O presente é igual para todos, e o que se perde é, por isso mesmo, igual, e o que se perde surge como a perda de um segundo. Com efeito, não é o passado ou o futuro que perdemos; como poderia alguém arrebatar-nos o que não temos? Por isso toma sentido, a toda a hora, nestas duas coisas: primeiramente, que tudo, desde toda a eternidade, apresenta aspecto idêntico e passa pelos mesmos ciclos, e pouco importa assistir ao mesmo espectáculo em duzentos anos ou toda a eternidade; depois, que tanto perde o homem que morre carregado de anos como o que conta breves dias, consistindo a perda no momento presente; não se pode perder o que não se tem.
Marco Aurélio (Imperador Romano), in "Pensamentos"

sábado, 19 de setembro de 2009

O Prazer em Perspectiva: a Esperança...

A esperança é filha do desejo, mas não é o desejo. Constitui uma aptidão mental, que nos fez crer na realização de um desejo. Podemos desejar uma coisa sem que a esperemos. Toda gente deseja a fortuna, muito poucos a esperam. Os sábios desejam descobrir a causa primitiva dos fenômenos; eles não têm nenhuma esperança de consegui-lo. O desejo aproxima-se algumas vezes da esperança, a ponto de confundir-se com ela. Na roleta, eu desejo e espero ganhar. A esperança é uma forma de prazer em expectativa que, na sua atual fase de espera, constitui uma satisfação freqüentemente maior do que o contentamento produzido pela sua realização. A razão é evidente. O prazer realizado limita-se em quantidade e em duração, ao passo que nada limita a grandeza do sonho criado pela esperança. A força e o encanto da esperança consistem em conter todas as possibilidades de prazer. Ela constitui uma espécie de vara mágica que transforma tudo. Os reformadores nunca fizeram mais do que substituir uma esperança por outra.
Gustave Le Bon, in "As Opiniões e as Crenças"

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Na Paz Não Há Verdadeiro Progresso, o Egoísmo Impera...

A ciência e a arte progridem sempre num primeiro período imediato a uma guerra. A guerra renova-as, rejuvenesce-as, fomenta, fortalece, as ideias e imprime-lhes certo impulso. Numa larga paz, pelo contrário, sucumbe também a ciência. Indiscutivelmente o culto da ciência requer valor e até espírito de sacrifício. Mas quantos sábios resistem à praga da paz? A falsa honra, o egoísmo e a ânsia de prazeres superficiais, bestiais, fazem também mossa no seu espírito. Procure o senhor acabar com uma paixão como a inveja, por exemplo; é ordinário e vulgar, mas com tudo isso penetra até nas nobílissimas almas dos sábios. Também o sábio acaba por querer ter a sua parte no brilho e esplendores gerais. Que significa, ante o triunfo da riqueza, o triunfo de uma descoberta científica, a menos que seja tão estrondosa como a descoberta de um novo planeta? Parece-lhe que em tais circunstâncias haverá ainda muitos escravos do trabalho para o bem geral?
Longe disso, procura-se a glória e cai-se no charlatanismo, na procura do efeito, e antes de mais nada no utilitarismo... visto que também se quer, ao mesmo tempo, ser rico. Na arte acontece o mesmo que na ciência: idêntica ânsia do efeito, obtido por um refinamento qualquer. As ideias simples e claras, generosas e sãs acabam por resultar antiquadas; precisa-se de qualquer coisa mais proibitivo, menos são; necessita-se do artifício das paixões. Pouco a pouco vão-se perdendo a medida e a harmonia, caindo-se, em compensação, no falseamento dos sentimentos e paixões, na chamada «diferenciação» dos sentimentos, que, na realidade, mais não é que uma adulteração. Veja até que ponto a arte degenera com uma longa paz. Se não houvesse guerra no mundo já teria muito simplesmente sucumbido. Todas as ideias boas da arte, as suas melhores ideias, resultam da guerra, da luta.

Fiodor Dostoievski, in 'Diário de um Escritor (Conversa de um amigo de Fiodor)'

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Modos de Constuir uma Personalidade...

Modos de construir uma personalidade, ou os oito problemas principais: Queremos simplificar-nos, ou diversificar-nos? Queremos ser mais felizes, ou mais indiferentes à felicidade e à desgraça? Queremos ficar mais satisfeitos connosco, ou mais exigentes e mais impiedosos? Queremos tornar-nos mais amigáveis, mais indulgentes, mais humanos, ou mais desumanos? Queremos ser mais prudentes, ou mais impulsivos? Queremos atingir um fim, ou evitar todos os fins - como, por exemplo, faz o filósofo para o qual toda a espécie de fins tresanda, despropositadamente, a limites impostos, mesquinhez, prisão, toleima? Queremos ser mais respeitados e mais importantes, ou mais desconsiderados? Queremos tornar-nos tiranos, ou impostores? Pastores, ou carneiros?
Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Cuida de Ser Tal e Qual Desejas Parecer...

Ao ler e ouvir, fá-lo com atenção; não disperses o entendimento, mas força-o a estar atento ao que faz e ao que tem diante de si, e não alhures. Se sai do caminho, chama-o de volta sem ruído, e guarda para outra ocasião os pensamentos alheios ao estudo. Sabe que perdes tempo e trabalho se não estás atento ao que lês ou ao que ouves. Não tenhas vergonha de perguntar o que não sabes, nem de aprender com outrem. Disso nunca se envergonham os homens insignes; antes, sim, de não saberem ou de não quererem aprender. Não te vanglories de saber o que não sabes, mas pergunta-o àqueles que acreditas o saibam. Se queres parecer sábio, trabalha por sê-lo, que para isso não há caminho suave. Semelhantemente, a maneira mais fácil de se parecer bom é sendo-o realmente. Enfim, em todas as coisas, cuida de ser tal e qual desejas parecer, porquanto, de outro modo, assaz vão será o teu desejo. O tempo põe a descoberto o que é falso e fingido, e dá força à verdade; como se costuma dizer, não há mentira que não se descubra.
Juan Luis Vives, in "Introdução à Sabedoria"

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Nossa Personalidade Deve Ser Indevassável...

A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito. E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadez ímpar. O que desloca a vulgar saudação - como está? - de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela em geral absolutamente oca e insincera.
Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'

domingo, 13 de setembro de 2009

Ser Distinto

A elegância distinta (...) é difícil de imitar, porque, no fundo, ela é negativa e pressupõe uma prática longa e constante. Pois a pessoa não deve, por exemplo, representar na sua atitude qualquer coisa que indique dignidade, já que dessa maneira se cai facilmente num carácter formal e orgulhoso; antes se deve, simplesmente, evitar o que é indigno, o que é vulgar; a pessoa nunca se deve esquecer, deve prestar sempre atenção a si e aos outros, não perdoar nada a si própria, não fazer aos outros nem de mais, nem de menos, não parecer comovida com nada, não se impressionar com nada, nunca se apressar demasiado, saber dominar-se em qualquer momento e, assim, manter um equilíbrio exterior, por muito forte que seja interiormente o temporal.
O homem nobre pode, em certos momentos, desleixar-se; o homem distinto nunca. Este é como um homem muito bem vestido: não se enconstará em lado nenhum e toda a gente evitará roçar nele. Ele distingue-se dos outros e, todavia, não deve ficar sozinho; pois, tal como em todas as artes e, portanto, também nesta, o mais difícil deve, finalmente, ser executado com facilidade: por isso, a pessoa distinta, apesar de todo o isolamento, deve parecer sempre ligada a outrem; em parte alguma, deve mostrar-se rígida; em todo o lado deve ser polida e aparecer sempre como a primeira, sem nunca se impor como tal. Vê-se, por conseguinte, que, para parecer distinto, se tem de ser realmente distinto.

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister'

sábado, 12 de setembro de 2009

Valoriza-se mais o Ter que o Ser

A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados económicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o «ter» efectivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual tornou-se social e directamente dependente do poderio social obtido. (...) O espectáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da actividade dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo. A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espectáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espectacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se torna opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falaccioso paraíso. O espectáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.
Guy Debord, in 'A Sociedade do Espectáculo'

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Os Truques do Discurso Político...


Parecemos estupefactos ao ver a multidão ser conduzida por meros sons, mas devemos lembrar-nos que, se os sons operam milagres, é sempre graças à ignorância. A influência dos nomes está na proporção exacta da falta de conhecimento. De facto, até onde tenho observado, na política, mais que em qualquer outra área, quando os homens carecem de alguns princípios fundamentais e científicos aos quais recorrer, eles tornam-se aptos a ter o seu entendimento manipulado por frases hipócritas e termos desprovidos de sentido, dos quais todos os partidos em qualquer nação têm um vocabulário.

William Paley, in 'The Principles of Moral and Political Philosophy'

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Ilusão Política das Grandes Manifestações Populares...

Nisto de manifestações populares, o mais difícil é interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente as interpreta pelos factos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos factos como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os factos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que contra factos não há argumentos. Ora só contra factos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os factos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos factos, que pode haver lógica. Nisto de manifestações — ia eu dizendo — o difícil é interpretá-las. Porque, por exemplo, uma manifestação conservadora é sempre feita por mais gente do que toma parte nela. Com as manifestações liberais sucede o contrário. A razão é simples. O temperamento conservador é naturalmente avesso a manifestar-se, a associar-se com grande facilidade; por isso, a uma manifestação conservadora vai só um reduzido número da gente que poderia, ou mesmo quereria, ir. O feitio psíquico dos liberais é, ao contrário, expansivo e associador; as manifestações dos "avançados" englobam, por isso, os próprios indiferentes de saúde, a quem toda a vitalidade acena.
Isto, porém, é o menos. O melhor é que, para quem pensa, o único sentido duma manifestação importante é demonstrar que a corrente da opinião contrária é muito forte. Ninguém arranja manifestações em favor de princípios indiscutíveis. Tão pouco se aglomeram vivas em torno a um homem a quem é feita uma oposição sem relevo ou importância. Não há manifestações a favor de alguém; todas elas são contra os que estão contra esse alguém. É por isso este, não o "homenageado", quem fica posto em relevo. Quanto maior a manifestação, mais fraco está o visado; maior se sente a força que se lhe opõe. Toda a manifestação é um corro-a-salvar-te de quem não pensa contribuir para a salvação senão com palmas e vivas. É este o ensinamento que toda a criatura lúcida tira das manifestações populares. Quando a uma criatura, que está em evidência ou regência, se faz uma manifestação que resulta pequeníssima, conte tal criatura com o apoio dum país inteiro. Se a manifestação fosse grande, tremesse então. É que os seus partidários teriam sentido, por uma intuição irritada, a grandeza da oposição a ele, e isso os chamaria em peso para a rua, para, com suas muitas palmas e vivas, aumentar a ele e a si próprio a ilusão duma confiança que enfraquece.

Fernando Pessoa, in 'Idéias Políticas'

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Depois das Eleições...

Depois de uma campanha eleitoral animada, a grande vantagem de qualquer eleição democrática é a de o povo sair, finalmente, da sala de estar dos políticos. É uma sensação de alívio que alguns eleitos descrevem como semelhante ao momento em que uma dor intensa, por qualquer razão obscura, termina. (...) Depois de qualquer eleição a sensação dos políticos - quer tenham perdido quer tenham ganho - é a de que o povo mais profundo acaba de entrar todo num comboio, dirigindo-se, compactamente, para uma terra distante. Esse povo voltará apenas, no mesmo comboio, nas semanas que antecedem a eleição seguinte. Esse intervalo temporal é indispensável para que o político tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou a indiferença em nova paixão genuína.
Gonçalo M. Tavares, in 'O Senhor Kraus'

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O Pudor é um Sentimento Masculino...

O pudor é um sentimento masculino. Quando uma mulher conhece outra, ao fim de dez minutos está já a explicar-lhe como é que o marido trabalha na cama. Ao fim de dez anos ou de uma vida, um homem não explica a outro como trabalha a mulher. É que o homem não é um novo-rico do sexo. Ou respeita a mulher por simples machismo? Porque é por machismo, por exemplo, que muitas vezes admira uma mulher que se distinguiu nas artes ou nas ciências. Implicitamente tem-se a ideia de que o normal seria não se distinguir. Se portanto se distingue, é isso tão extraordinário como um trapezista de circo ou coisa assim. Admirando-se então a mulher, simultaneamente se humilha. Dessa humilhação se fazem muitas admirações.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A Principal Fonte da Nossa Ignorância...

Quanto mais aprendemos sobre o mundo, quanto mais profundo o nosso conhecimento, mais específico, consistente e articulado será o nosso conhecimento do que ignoramos - o conhecimento da nossa ignorância. Essa, com efeito, é a principal fonte da nossa ignorância: o facto de que o nosso conhecimento só pode ser finito, mas a nossa ignorância deve necessariamente ser infinita. (...) Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que diz respeito aos fragmentos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância.
Karl Popper, in 'As Origens do Conhecimento e da Ignorância'

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Amor Sugado

O amor, enquanto afeição humana, é o amor que deseja o bem, possui uma disposição amigável, promove a felicidade dos demais e alegra-se com ela. Mas é patente que aqueles que possuem uma inclinação meramente sexual não amam a pessoa por nenhum dos motivos ligados à verdadeira afeição e não se preocupam com a sua felicidade, mas podem até mesmo levá-la à maior infelicidade simplesmente visando satisfazer a sua própria inclinação e apetite. O amor sexual faz da pessoa amada um objecto do apetite; tão logo foi possuída e o apetite saciado, ela é descartada «tal como um limão sugado».
Emmanuel Kant, in 'Lições de Ética'

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A Sabedoria da Calma...

Aquele que mantém a calma diante de todas as adversidades da vida mostra simplesmente ter conhecimento de quão imensos e múltiplos são os seus possíveis males, motivo pelo qual ele considera o mal presente uma parte muito pequena daquilo que lhe poderia advir: e, inversamente, quem sabe desse facto e reflecte sobre ele nunca perderá a calma.
Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Ser Feliz"

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Insultar é uma Honra...

Assim como ser insultado é uma vergonha, insultar é uma honra. Por exemplo, mesmo que a verdade, o direito e a razão estejam do lado do meu adversário, não deixo de insultá-lo; desse modo, todas as suas qualidades passam a ser desconsideradas, e o direito e a honra passam a estar do meu lado. Ele, pelo contrário, perdeu provisoriamente a sua honra - até conseguir restabelecê-la, não mediante direito e razão, mas por tiros e estocadas. Logo, a rudeza é uma qualidade que, no ponto de honra, substitui ou se sobrepõe sobre as outras. O mais rude tem sempre razão: para quê tantas palavras? Qualquer estupidez, insolência, maldade que alguém possa ter feito, uma rudeza retira-lhes essa característica e elas são de imediato legitimadas. Se, numa discussão ou conversa, outro indivíduo mostra conhecimento mais correcto do assunto, um amor mais austero à verdade, um juízo mais saudável, mais entendimento que nós, ou se em geral exibe méritos intelectuais que nos deixam na sombra, então podemos de imediato suprimir semelhantes superioridades e a nossa própria mesquinhez por elas revelada e sermos, por nosso turno, superiores, tornando-nos ofensivos e rudes.
Pois uma rudeza derrota todo o argumento e eclipsa qualquer espírito; isso se o oponente não tomar parte nela e replicar com outra maior ainda. Não o fazendo, chegamos à vantagem no nobre desafio; desse modo, permanecemos vitoriosos e com a honra do nosso lado. Verdade, conhecimento, entendimento, inteligência e espírito têm de ser desconsiderados e acabam por ser reprimidos pela divina rudeza. Por conseguinte: as «pessoas de honra», tão logo são confrontadas com uma opinião diferente da sua ou simplesmente com um entendimento mais arguto que pode contradizê-las, preparam-se imediatamente para montar no seu cavalo de batalha, e se, numa controvérsia, lhes faltar um contra-argumento, procurarão uma rudeza, que servirá para o mesmo fim e é mais fácil de encontrar. Em seguida, vão-se triunfantes. Nesse caso, já se vê o quão é justo dizer, em louvor do princípio da honra, que ele enobrece o tom em sociedade.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'