
Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir de malícia, a qual como toda a espécie de malícia não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia. Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distrai-o do seu próprio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional. Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual. Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu. O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora também lhe sirvam todas as pontas da meada intelectual.
Almada Negreiros, in "Ensaios"
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